A posição do Espiritismo, em face das religiões, foi definida desde o princípio, ou seja, desde a publicação de O Livro dos Espíritos. A terceira parte do livro tem o título de “Leis Morais”, e começa pela afirmação: “A lei natural é a lei de Deus”, que equivale ao reconhecimento da unidade divina de todas as leis que regem o Universo. Note-se que Kardec e os Espíritos referem-se à lei de Deus no singular, como lei única, e nela incluem as leis morais, no plural. Assim, as leis morais são espécies de um gênero, que é a lei natural. Mas como esta não é a lei da Natureza, e sim a lei de Deus, não estamos diante de uma concepção monista natural, mas de uma concepção monista de ordem ética. As religiões, como fenômenos éticos, formas de educação moral das coletividades humanas, nada mais são do que processos diferenciados, segundo as necessidades circunstanciais e temporais da evolução, pelos quais as leis morais se manifestam no plano social.
Vejamos a explicação de Kardec, no comentário que fez ao item 617 de O Livro dos Espíritos: “Entre as leis divinas, umas regulam o movimento e as relações da matéria bruta: essas são as leis físicas; seu estudo pertence ao domínio da ciência. As outras concernem especialmente ao homem em si mesmo, e às suas relações com Deus e com os seus semelhantes. Compreendem as regras da vida do corpo, tanto quanto as da vida da alma: essas são as leis morais.” Dessa maneira, o Espiritismo nos oferece a visão global do Universo, num vasto sistema de relações, que unem todas as coisas, desde a matéria bruta até à divindade, ou seja, desde o plano material até o espiritual. As religiões, nesse amplo contexto, são como fragmentações temporárias do processo único da evolução humana.
Essa compreensão histórica permite ao Espiritismo encarar as religiões, não como adversárias, mas como formas progressivas do esclarecimento espiritual do homem, que atinge na atualidade um momento crítico, de passagem para um plano superior. Daí a afirmação de Kardec, feita em O Livro dos Espíritos e repetida em outras obras, particularmente em O que é o Espiritismo, de que este, na verdade, é o maior auxiliar das religiões. Auxiliar em que sentido? Primeiro, no sentido de fornecer às religiões, entrincheiradas em seus dogmas de fé, as armas racionais de que necessitam, para enfrentar o racionalismo materialista, e especialmente as armas experimentais, com que sustentar os seus princípios espirituais diante das ciências. Depois, no sentido de que o Espiritismo não é nem pretende ser uma religião social, pelo que não disputa um lugar entre as igrejas e as seitas, mas quer apenas ajudar as religiões a completarem a sua obra de espiritualização do mundo. A finalidade das religiões é arrancar o homem da animalidade e levá-lo à moralidade. O Espiritismo vem contribuir para que essa finalidade seja atingida.
Nisto se repete e se confirma o que o Cristo declarou, a propósito de sua própria missão, ao dizer que não vinha revogar a lei e os profetas, mas dar-lhes cumprimento. Como desenvolvimento natural do Cristianismo, o Espiritismo prossegue nesse mesmo rumo. Sua finalidade não é combater, contrariar, negar ou destruir as religiões, mas auxiliá-las. Para auxiliá-las, porém, não pode o Espiritismo endossar os seus erros, o seu apego aos formalismos religiosos, a sua aderência às circunstâncias. Porque tudo isso diminui e enfraquece as religiões, expondo-as ao perigo do fracasso, diante das próprias leis evolutivas, que impulsionam o homem para além das suas convenções circunstanciais. O Espiritismo, assim, não condena as religiões. Considera que todas elas são boas — o que é sempre contestado com violência pelo espírito de sectarismo — mas pretende que, para continuarem boas, não estacionem nos estágios inferiores, já superados pela evolução humana.
Justamente por isso, o Espiritismo se apresenta, aos espíritos formalistas e sectários, como um adversário perigoso, que parece querer infiltrar-se nas estruturas religiosas e miná-las, para destruí-las. Era o que parecia o Cristianismo primitivo, para os judeus, gregos e romanos. Não obstante, os ensinos de Jesus não visavam à 'destruição', mas ao esclarecimento e à libertação do pensamento religioso da época. Podem alegar os religiosos atuais que os espíritas os combatem, às vezes com violência. O mesmo faziam os cristãos primitivos, em relação às religiões antigas. Mas essa atitude agressiva não decorre dos princípios doutrinários, e sim das circunstâncias sociais em que se encontram os inovadores, diante da tradição. Por outro lado, é preciso considerar que a agressividade das religiões para com o Espiritismo é uma constante histórica, determinada pela própria natureza social das religiões organizadas ou positivas. Nada mais compreensível que o revide dos espíritas, quando ainda não suficientemente integrados nos seus próprios princípios.
No capítulo segundo da terceira parte de O Livro dos Espíritos, item 653, temos a explicação e a justificação da existência das religiões formalistas. Kardec estuda, através de perguntas aos Espíritos, a lei de adoração, que é o fundamento e a razão de ser de todo o processo religioso. Desse diálogo resulta a posição espírita bem definida: “A verdadeira adoração é a do coração.” Não obstante, a adoração exterior, através do culto religioso, por mais complicado e material que este se apresente, desde que praticada com sinceridade, corresponde a uma necessidade evolutiva dos espíritos a ela afeiçoados. Negar a esses espíritos a possibilidade de praticarem a adoração exterior, seria tão prejudicial, quanto admitir que os espíritos que já superaram essa fase continuassem apegados a cultos materiais. A cada qual, segundo as suas condições evolutivas.
O princípio da tolerância substitui, portanto, no Espiritismo, o sistema de intolerância que marca estranhamente a tradição religiosa. As religiões, pregando o amor, promoveram a discórdia. Ainda hoje podemos sentir a agressividade do chamado espírito-religioso, na intolerância fanática das condenações religiosas. Por isso Kardec esclareceu, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, que o princípio religioso da doutrina não era o de salvação pela fé, e nem mesmo pela verdade, mas pela caridade. A fé é sempre interpretada de maneira particular, como a dogmática de determinada igreja a apresenta. A verdade é sempre condicionada às interpretações sectárias. Mas a caridade, no seu mais amplo sentido, como a fórmula do amor ao próximo ensinada pelo Cristo, supera todas as limitações formais. A salvação espírita não está na adesão a princípios e sistemas, mas na prática do amor.
Do livro “O Espírito e o Tempo” (Cap. IV) - Herculano Pires
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