A competição pela hegemonia no campo da prática terapêutica atravessa os séculos. Toda a História é pontuada por conflitos entre um grupo que se arroga a exclusividade do conhecimento médico - supostamente superior e verdadeiro, contra outros, tachados de charlatões. No Brasil, a restrição do exercício da medicina aos diplomados tem encontrado inúmeros desafios. Entre os anos 1890 e 1940, especialmente, uma das preocupações constantes para muitos médicos foram às práticas e doutrinas espíritas imiscuindo-se na atividade de cura e de terapia.
Nesse período, muitos profissionais da área da saúde formularam teorias para explicá-las e deslegitimá-las - o que não raramente assumia a forma de campanhas contra o espiritismo -, enquadrando-as - junto a tantos outros sistemas que concorriam com a medicina oficial - nos casos de “charlatanismo”. A eficácia dessas práticas nem chegava a ser objeto de discussão no âmbito da medicina acadêmica: era terminantemente negada.
Argumentava-se que ela colocava pacientes sob a responsabilidade de pessoas sem competência para tratá-las; impedia a intervenção qualificada dos médicos (com seus saberes e suas práticas oficiais) e ainda podia ser diretamente prejudicial, agravando uma enfermidade. Esse tipo de “medicina” - “supersticiosa”, “primitiva” e “irracional” - só podia existir em virtude da “ignorância” e do “misticismo” do povo, conjugados à falta de repressão por parte das autoridades competentes.
A partir da década de 1940, de acordo com Emerson Giumbelli, a tensão entre a medicina acadêmica e o espiritismo parece ter se atenuado. Esforçandose para alcançar legitimidade frente aos poderes públicos como umas religiões, os espíritas, coordenadas pela Federação Espírita Brasileira, foram gradativamente abandonando os traços que os identificavam à ciência médico formal e acadêmica, e paulatinamente intervindo no campo espiritual e moral.
Daí a difusão de práticas que se destinavam a agir sobre o espírito, como os “passes” e as “desobsessões”. O “físico” e o “material” só seriam atingidos, caso o fossem, de modo tangencial, em virtude de sua ligação ao espírito.
Recentemente, porém, o espiritismo volta a ganhar evidência, sinalizando a retomada de uma perspectiva de “ciência espiritualizada”. Médicos espíritas vêm propondo um novo paradigma na medicina que leva em conta a espiritualidade e seus corolários - chamam-no de paradigma médico-espírita.
Coordenados pela AME-Brasil - Associação Médico-Espírita do Brasil, criada na cidade de São Paulo em 1995 -, esses profissionais têm feito pesquisas,
congressos e campanhas, buscando implementar mudanças na base da medicina oficial; fato que vem crescendo no Brasil e despertando a atenção de
pesquisadores no país e no exterior.
Há de se destacar também que cresce o número de estudos científicos a respeito do efeito da religiosidade sobre a saúde. Também, vários médicos vêm associando a seus trabalhos os princípios de suas crenças religiosas, como, por exemplo, os médicos católicos, que fundaram a Associação Católica Médica.
No encalço dessas críticas à “medicina oficial”, proclamando a união entre a religião e a ciência, a fé e a razão, os médicos espíritas reivindicam, de modo bastante articulado, um espaço dentro da própria ciência médica, tentando escapar aos epítetos que acompanham as práticas de cura espírita, como o de
“supersticiosa”, “primitiva” e “irracional”. Visa também coordenar ações “anticharlatanismo”, i.e., desmascarar pessoas não espíritas e sem formação médica que se dizem capazes de realizar “milagres”.
A Crise da Biomedicina e a Emergência das Medicinas Alternativas
O termo biomedicina tem sido amiúde, empregado nos trabalhos antropológicos para designar a medicina moderna, remetendo à estrutura institucional da medicina no Ocidente. Os fundamentos dessa ciência alicerçam-se na mecânica clássica; assim, os médicos supõem poder isolar as partes do todo para compreendê-las e, adiante, reintegrá-las ao seu mecanismo original - a leitura do todo é o resultado da leitura das partes isoladas. Ostentam um discurso de caráter universal e generalizante, deixando os casos individuais em plano secundário.
Na perspectiva biomédica, as doenças são entendidas como se fossem “coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para pessoa.” Expressam-se por um conjunto de sinais e sintomas que são manifestações de lesões de uni ou multicausalidades, que alteram a morfologia e a dinâmica do corpo. Elas devem ser buscadas no âmago do organismo e
corrigidas por algum tipo de intervenção concreta: terapêutica medicamentosa ou cirúrgica.
A biomedicina, situando-se no âmbito das ciências naturais, busca trabalhar com dados físicos e quantificáveis. Fiel a esse objetivo, ela não leva em conta a subjetividade do adoecimento – a complexidade e a singularidade do sofrimento humano -, já que ela não pode ser objetivada e generalizada.
“Uma Nova Medicina para um Novo Milênio”
O título desta seção, tomado emprestado de um artigo espírita, revela-nos o entusiasmo dos médicos espíritas nesses últimos anos. A leitura que fazem deste momento é a de um campo fértil para a ação. Imbuídos de uma visão teleológica e fatalista, peculiar à doutrina espírita, os médicos espíritas vêm
enxergando, nos acontecimentos recentes da medicina – crise do paradigma biomédico e crescimento das medicinas holísticas -, prenúncios favoráveis para uma ação mais enérgica, mais meticulosa no sentido de estender os seus fundamentos de espiritualidade para essa ciência.
A crescente procura pelas medicinas alternativas – ou, outrora consideradas alternativas – vem ao encontro das aspirações dos médicos espíritas. A principal “vantagem” dessas medicinas em relação à biomedicina reside na compreensão do todo, ou seja, na interpretação do binômio saúde-doença, em que os aspectos psíquicos e físicos são indissociáveis na busca do restabelecimento do equilíbrio.
Os custos crescentes que a medicina convencional acarreta; somados aos fracassos em lidar com algumas doenças - como câncer, doenças do coração, hipertensão arterial, doenças psiquiátricas, entre outras que não se mostram tratáveis pela intervenção tecnológica baseada no modelo uni causal de doenças -; além das novas doenças, males e causas de mortes que passam a ser cada vez mais relacionadas com as condições de trabalho e de vida num
determinado contexto socioeconômico e cultural, vêm tornando as medicinas alternativas uma realidade cada vez mais presente.
Ciente das dificuldades da biomedicina em relação aos desafios mencionados acima, os médicos espíritas têm estado atentos à situação para difundir seus pressupostos como uma solução a estes impasses. Fazendo coro a essas medicinas, os médicos espíritas vêm reforçando as críticas ao “reducionismo” da biomedicina e defendendo uma espécie de abertura para as propostas holísticas que tomam de assalto a época em que vivemos. Enumerando pesquisas científicas que mostram a evidência de “algo além da matéria”, os espíritas esperam chamar a atenção da comunidade acadêmica para as “realidades” de um “novo tempo” que se anuncia.
E prosseguem na enumeração de vários exemplos que, no imaginário espírita, se não corroboram de fato uma mudança, pelo menos indicam a possibilidade de abertura da comunidade científica para “realidades” que até então eram desconsideradas como objeto de especulação.
O protocolo de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde, de 1946, é frequentemente lembrado pelos espíritas como um avanço na superação do materialismo da medicina convencional. Neste, ficou acordado que a "saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental, social e não apenas a ausência de doença". Compreendendo que o bem estar mental deve contemplar também a dimensão espiritual, os médicos espíritas têm evocado esse protocolo, não raras vezes, como uma das justificativas para a abertura de cursos de “espiritualidade e medicina” em diversas universidades.
Para os espíritas, “a higiene mental implica na elevação do pensamento e por isso todo aquele que se alimenta mentalmente de imagens e propósitos saudáveis, equilibrados e bons, atrairá para si afinidades nesse sentido e consequentemente se sentirá bem”. Segundo eles, a sede do pensamento encontra-se no espírito. O pensamento é uma vibração capaz de agir no corpo e atrair vibrações outras que estejam na mesma “faixa”. Dessa forma, a “qualidade” do pensamento é capital para a saúde; pois, além de ter efeito direto no organismo, o pensamento também atrai companhias espirituais afins, que podem ou prejudicar a saúde do “espírito encarnado” ou contribuir com a sua manutenção.
Não obstante o otimismo reinante existe uma grande preocupação no que tange ao exercício legal da medicina espírita, o que se justifica pelos percalços já vividos.
À Guisa de Conclusão
Sugerimos a hipótese de que o espiritismo, talvez motivado pelas circunstâncias do presente, esteja retomando a dimensão de uma ciência espiritualizada, no âmbito médico.
No rastro da crise da medicina e na experimentação de novas terapias, os médicos espíritas vão traçando suas ações para expandir seus fundamentos e estendê-los à ciência médica vigente. A reapropriação de novas pesquisas que contestam os fundamentos dessa ciência é um dos expedientes de que os espíritas lançam mão. Os eventos que podem ser usados como “testemunho” da influência dos espíritos sobre a matéria ou da vida após a morte também são um recurso à parte. Um dos grandes exemplos, que já citamos, são as EQMs (Experiências Quase Morte), que têm despertado o interesse não só da academia, mas também da mídia em geral, sendo amplamente discutidas em jornais, revistas e filmes.
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