Faço parte de um grupo de estudos chamado Papo entre Amigos e abordamos vários temas polêmicos e pouco debatidos dentro da doutrina espírita, o que causa muito desconhecimento sobre determinados temas, e o da Doação de Órgãos é um deles, pois ainda há muita ignorância, preconceito e pior, falsas informações que são colocadas como orientações da espiritualidade.
A intenção que nos move ao escrever este artigo não é tentar convencer ninguém a se tornar um doador de órgãos, pois isso feriria um dos princípios fundamentais do Espiritismo: o livre-arbítrio. Nossa motivação não é outra senão aquela que objetiva contribuir com um pouco mais de esclarecimento a respeito deste assunto tão polêmico e sempre muito atual.
Há que se considerar que a medicina representa as mãos de Deus na Terra agindo em benefício do homem. Essa bênção divina é acompanhada pelos Espíritos tutelares de nosso planeta e está sob a sábia orientação do próprio Cristo. Assim, no tempo certo, os progressos da medicina propiciam a cura ou o alívio de várias enfermidades que ainda assolam o homem terreno. Os transplantes, ocorridos em função da doação de órgãos, se enquadram nesta situação. Trata-se de conquista da humanidade e uma sublime oportunidade em que Deus nos permite auxiliar na salvação de uma vida ou pelo menos na diminuição das dores dos nossos semelhantes.
A doação de órgãos foi regulamentada no Brasil em agosto de 1968, conforme a lei nº 5.479, desde que consentida pelo doador. Os critérios adotados para a constatação da morte limitavam muito os transplantes, pois não existia o conceito de morte encefálica, sendo que os órgãos só podiam ser removidos após uma parada cardiorrespiratória e a realização do exame denominado eletroencefalograma isoelétrico. Esses procedimentos faziam com que, muitas vezes, se perdessem as qualidades dos órgãos para transplantes. Somente no ano de 1993 o conceito de morte encefálica foi incorporado à esta prática.
Quatro anos mais tarde, em 1997, através do senador Darci Ribeiro, foi aprovada a lei nº 9.434 que autorizava a retirada de órgãos para transplante após constatação de morte encefálica. Entretanto, essa lei estabelecia também a doação presumida de órgãos, ou seja, presumia-se que todo cidadão que não se manifestasse como “não-doador” em seu documento de identidade seria considerado como um doador de órgãos.
Posteriormente, o governo brasileiro aprovou a lei nº 10.211 em março de 2001 e que está em vigor atualmente. De acordo com esta lei, não vale mais o conceito de doação presumida e perde a validade a manifestação de vontade do cidadão em sua carteira de identidade ou habilitação. Assim, a doação de órgãos só pode ser efetivada mediante a autorização expressa do cônjuge ou de parente mais próximo, independente da vontade do falecido. Em outras palavras: a decisão será sempre da família. Entretanto, cabe a cada um de nós fazer a sua escolha e comunicá-la aos seus familiares, solicitando que a sua decisão seja acatada e respeitada, seja ela qual for.
Mas e o Espiritismo? É a favor ou contra a doação de órgãos? É importante ressaltarmos que na época da codificação espírita nem se cogitava desse assunto. Porém, encontramos ensinamentos nas obras de Allan Kardec que nos autorizam a dizer que sim, o Espiritismo é a favor da doação de órgãos, respeitando também aqueles que optam em não doar, pois essa escolha é de cunho pessoal e não deve ser forçada sob nenhum pretexto.
Com o Espiritismo aprendemos que:
1. “Na agonia, a alma, algumas vezes, já tem deixado o corpo; nada mais há que a vida orgânica. O homem já não tem consciência de si mesmo; entretanto, ainda lhe resta um sopro de vida orgânica. O corpo é a máquina que o coração põe em movimento. Existe, enquanto o coração faz circular nas veias o sangue, para o que não necessita da alma.” (Questão 156 de O Livro dos Espíritos). Não seria isso muito semelhante ao conceito de morte encefálica, cujo diagnóstico só foi possível no final do século XX? Há sangue nas veias, mas já não existe mais vida.
2. Na questão 257 de O Livro dos Espíritos aprendemos que, depois de desligado do corpo físico por ocasião da morte, o Espírito não sente nenhuma dor relacionada à sua antiga vestimenta carnal, pois esta já não tem mais ligação fluídica com o seu perispírito (corpo espiritual).
3. Ao tratar da alimentação do homem na questão 723 de O Livro dos Espíritos, os benfeitores espirituais dizem que no atual estágio da humanidade a carne alimenta a carne. Essa idéia nos permite um questionamento sob o seguinte enfoque: se, para o sustento da vida, a carne alimenta a carne, será que um órgão em boas condições não poderia substituir um outro que esteja danificado? Isto também não seria “carne alimentando carne”?
Não podemos nos esquecer de que o corpo físico é apenas uma vestimenta, um invólucro que é descartado quando não tem mais condições de uso, tendo em vista que o Espírito despoja-se dele por ocasião do fenômeno que chamamos de morte. Na verdade, o corpo físico não nos pertence. Ele nos é concedido por Deus como um empréstimo, a fim de que possamos usá-lo em nossa trajetória terrestre, visando nossa evolução espiritual. Tanto é assim que quando morremos, ele fica por aqui mesmo, no solo do planeta. “(...) és pó, e ao pó tornarás.” (Gênesis, 3:19).
Ademais, as lesões que ficam registradas em nosso corpo espiritual geradas a partir da desarmonia do Espírito são aquelas causadas por suicídio e pelos nossos excessos, tais como as doenças oriundas do uso do álcool, do fumo e das drogas. Podemos dizer que o comprometimento e, consequentemente, o desequilíbrio de nossas estruturas perispiríticas ocorrem quando infringimos as Leis Divinas.
Não obstante, a ideia de que precisaríamos do corpo físico na vida espiritual tem sua origem no antigo Egito, de onde surgiram as múmias, pois os faraós acreditavam que a vestimenta carnal era imprescindível para a continuidade da vida no Além. Corrigindo este pensamento, Paulo de Tarso, o grande apóstolo dos gentios, ensinou em sua primeira carta aos Coríntios (15:50) que “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus”.
Se já sabemos que vida continua após a morte do corpo físico e que no plano espiritual não teremos necessidade dele, por que então não beneficiar alguém que ainda sofre na Terra? Doar nossos órgãos após a partida deste mundo é o coroamento de uma existência consagrada a auxiliar os semelhantes; é saber que nossa última contribuição foi ajudar alguém a viver um pouco mais.
Portanto, com base nos postulados doutrinários, cabe-nos então a seguinte interrogação: o interesse individual de preservação da integridade física, mesmo após a morte, deve prevalecer sobre o interesse social de garantir a vida de pessoas enfermas? As respostas para esta pergunta encontramos no próprio Evangelho do Mestre Maior a nos ensinar que devemos amar o próximo como a nós mesmos e fazer aos nossos semelhantes tudo aquilo que gostaríamos que eles nos fizessem (Marcos 12:31 e Mateus 7:12). Não podemos pensar na nossa situação e de nossos entes queridos somente como doadores. No porvir, poderemos ser um de nós a figurar como um possível receptor. Tudo isso nos leva a concluir que devolver a saúde e a esperança a um indivíduo enfermo é muito mais importante do que conservarmos intacto um cadáver que os vermes comerão debaixo da terra ou que se tornará um punhado de cinzas após a cremação.
Um ponto obscuro nesse assunto e sobre o qual a Doutrina Espírita jorra suas luzes é com relação a rejeição dos órgãos doados. Isto ocorre quando as vibrações energéticas do corpo espiritual do doador e do receptor são diferentes, fazendo com que o órgão transplantado não encontre sintonia vibracional no destino. A rejeição orgânica é, na verdade, uma consequência da divergência vibratória dos sistemas vitais de um e de outro. Para atenuar tal problema e até mesmo saná-lo em alguns casos, é necessário uma grande dose de altruísmo por parte do doador e de gratidão por parte do receptor, tudo isso somado ao auxílio dos benfeitores espirituais. Aí ocorre o processo que o espírito André Luiz denomina como “vibrações compensadas” e que, no caso dos transplantes, o autor espírita Eurípedes Kühl chama de “equalização de fluidos, transitando nas camadas mais profundas do psiquismo do doador e do receptor”.
É importante salientar que o doador sempre será beneficiado em virtude do seu ato de amor. Além de ter todo o amparo da misericórdia divina, os amigos espirituais e protetores daquele que recebeu os órgãos lhe serão eternamente gratos. As vibrações de gratidão por parte do próprio receptor e de seus familiares beneficiarão ainda mais o desencarnado no plano espiritual.
Como determina a legislação vigente o que vale é a palavra final da família. Portanto, ao comunicarmos nossa decisão aos nossos familiares, pensemos nas crianças gravemente enfermas, cuja salvação reside apenas no transplante. Pensemos que temos em nossas mãos o poder de aliviar dores e salvar vidas, sob as bênçãos de Deus. E por falar Nele é bom lembrar que Suas leis são perfeitas e que o não-doador de hoje pode ser um receptor amanhã. Cabe a cada um de nós contribuir para esclarecer o fenômeno da morte do corpo físico, a imortalidade da alma e a vida no plano espiritual. É nosso dever cuidarmos do corpo que nos serve de instrumento evolutivo, mas não devemos ser egoístas e vaidosos a ponto de não permitir sua mutilação para fins humanitários após a morte.
Reproduzimos parte de um artigo publicado no jornal “Folha de São Paulo” no dia 15/05/2001. O autor é o Professor Doutor Raul Marino Júnior, neurocirurgião e professor titular de Neurocirurgia da Divisão de Clínica Neurocirúrgica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Eis o texto: “(...) Heróis são difíceis de achar – doadores vivos, doadores potenciais mantidos vivos em UTI’s em respiradores artificiais e famílias esclarecidas que acabaram de sofrer a tragédia da perda de um ente querido. É preciso uma alta dose de altruísmo, solidariedade e generosa caridade cristã para transferir a própria vida, por nossa vontade, após nos despirmos das prisões da carne, ou consentir que um parente venha a compartilhar o dom da vida com alguém da lista nacional (de pacientes aguardando recepção de órgãos), após um infortúnio. (...) Os transplantes, ligados intimamente que estão ao ato supremo das doações, surgiram como que para testar nossas virtudes de solidariedade humana, nosso altruísmo, nossa generosidade, nossa piedade, nossa compaixão, nossa filantropia, nossa benevolência, nossa bondade, nosso amor ao próximo, nosso Espírito humanitário, nossa indulgência, nossa excelência moral, nossa grandeza de alma, nossa misericórdia, nosso Espírito de socorro, amparo e auxílio e, sobretudo, a virtude mais decantada nos Evangelhos: o amor e a caridade”.
Sou doador e minha família está bastante orientada sobre minha decisão e opção:
“Quando minha hora chegar, não tente introduzir vida artificial no meu corpo, através de uma máquina. Em vez disso, doe meus olhos para um homem que nunca viu o Sol nascer, nem o rosto de um bebê ou o amor nos olhos de uma mulher. Doe meus rins para uma pessoa que depende de máquina para viver de semana em semana. Pegue meu sangue, meus ossos, todos os músculos e nervos do meu corpo, e encontre uma maneira de fazer uma criança aleijada a andar. Explore todos os cantos do meu cérebro. Pegue minhas células, se for necessário, e cultive-as. Então, quem sabe um dia, um garoto mudo consiga gritar quando seu time marcar um gol, e uma garota surda consiga ouvir o som dos pingos da chuva batendo na sua janela. Queime o que restar de mim e espalhe as cinzas para ajudar as flores crescerem. Se você quiser mesmo enterrar alguma coisa, enterre meus erros e minhas fraquezas. Minha alma eu peço que seja entregue a Deus”.
Renato Mayrink
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