Autor: Allan Kardec
O LIVRO DOS ESPÍRITOS
222. Não é novo, dizem alguns, a ideia da
reencarnação; ressuscitaram-no da doutrina de
Pitágoras. Nunca dissemos ser de invenção
moderna a Doutrina Espírita.
Constituindo uma lei da Natureza, o Espiritismo
há de ter existido desde a origem dos tempos e
sempre nos esforçamos por demonstrar que dele
se descobrem sinais na antiguidade mais remota.
Pitágoras, como se sabe, não foi o autor do
sistema da metempsicose; ele o colheu dos
filósofos indianos e dos egípcios, que o tinham
desde tempos imemoriais. A ideia da
transmigração das almas formava, pois, uma
crença vulgar, aceita pelos homens mais
eminentes. De que modo a adquiriram? Por uma
revelação, ou por intuição?
Ignoramo-lo Seja, porém, como for, o que não
padece dúvida é que uma ideia não atravessa
séculos e séculos, nem consegue impor-se a
inteligências de escol, se não contiver algo de
sério. Assim, a ancianidade desta doutrina, em
vez de ser uma objeção, seria prova a seu favor.
Contudo, entre a metempsicose dos antigos e a
moderna doutrina da reencarnação, há, como
também se sabe, profunda diferença, assinalada
pelo fato de os Espíritos rejeitarem, de maneira
absoluta, a transmigração da alma do homem
para os animais e reciprocamente.
Portanto, ensinando o dogma da pluralidade das
existências corporais, os Espíritos renovam uma
doutrina que teve origem nas primeiras idades
do mundo e que se conservou no íntimo de
muitas pessoas, até aos nossos dias.
Simplesmente, eles a apresentam de um ponto
de vista mais racional, mais acorde com as leis
progressivas da Natureza e mais de
conformidade com a sabedoria do Criador,
despindo-a de todos os acessórios da
superstição. Circunstância digna de nota é que
não só neste livro os Espíritos a ensinaram no
decurso dos últimos tempos: já antes da sua
publicação, numerosas comunicações da mesma
natureza se obtiveram em vários países,
multiplicando-se depois, consideravelmente.
Talvez fosse aqui o caso de examinarmos por
que os Espíritos não parecem todos de acordo
sobre esta questão. Mais tarde, porém,
voltaremos a este assunto.
Examinaremos de outro ponto de vista a matéria
e, abstraindo de qualquer intervenção dos
Espíritos, deixemo-los de lado, por enquanto,.
Suponhamos que esta teoria nada tenha que ver
com eles; suponhamos mesmo que jamais se
haja cogitado de Espíritos.
Coloquemo-nos, momentaneamente, num
terreno neutro, admitindo o mesmo grau de
probabilidade para ambas as hipóteses, isto é, a
da pluralidade e a da unicidade das existências
corpóreas, e vejamos para que lado a razão e o
nosso próprio interesse nos farão pender.
Muitos repelem a ideia da reencarnação pelo só
motivo de ela não lhes convir. Dizem que uma
existência já lhes chega de sobra e que,
portanto, não desejariam recomeçar outra
semelhante. De alguns sabemos que saltam em
fúria só com o pensarem que tenham de voltar à
Terra. Perguntar-lhes-emos apenas se imaginam
que Deus lhes pediu o parecer, ou consultou os
gostos, para regular o Universo. Uma de duas: ou
a reencarnação existe, ou não existe; se existe,
nada importa que os contrarie; terão que a
sofrer, sem que para isso lhes peça Deus
permissão. Afiguram-se-nos os que assim falam
um doente a dizer: Sofri hoje bastante, não
quero sofrer mais amanhã. Qualquer que seja o
seu mau-humor, não terá por isso que sofrer
menos no dia seguinte, nem nos que se
sucederem, até que se ache curado.
Conseguintemente, se os que de tal maneira se
externam tiverem que viver de novo,
corporalmente, tornarão a viver, reencarnarão.
Nada lhes adiantará rebelarem-se, quais crianças
que não querem ir para o colégio, ou
condenados, para a prisão. Passarão pelo que
têm de passar.
São demasiado pueris semelhantes objeções,
para merecerem mais seriamente examinadas.
Diremos, todavia, aos que as formulam que se
tranquilizem, que a Doutrina Espírita, no tocante
à reencarnação, não é tão terrível como a julgam;
que, se a houvessem estudado a fundo, não se
mostrariam tão aterrorizados; saberiam que
deles dependem as condições da nova existência,
que será feliz ou desgraçada, conforme ao que
tiverem feito neste mundo; que desde agora
poderão elevar-se tão alto que a recaída no
lodaçal não lhes seja mais de temer.
Suponhamos dirigir-nos a pessoas que acreditam
num futuro depois da morte e não aos que criam
para si a perspectiva do nada, ou pretendem que
suas almas se vão afogar num todo universal,
onde perdem a individualidade, como os pingos
da chuva no oceano, o que vem a dar quase no
mesmo. Ora, pois: se credes num futuro
qualquer, certo não admitis que ele seja idêntico
para todos, porquanto de outro modo, qual a
utilidade do bem? Por que haveria o homem de
constranger-se? Por que deixaria de satisfazer a
todas as suas paixões, a todos os seus desejos,
embora a custa de outrem, uma vez que por isso
não ficaria sendo melhor, nem pior? Credes, ao
contrário, que esse futuro será mais ou menos
ditoso ou inditoso, conforme ao que houverdes
feito durante a vida e então desejais que seja tão
afortunado quanto possível, visto que há de
durar pela eternidade, não? Mas, porventura,
teríeis a pretensão de ser dos homens mais
perfeitos que hajam existido na Terra e, pois,
com direito a alcançardes de um salto a suprema
felicidade dos eleitos? Não. Admitis então que há
homens de valor maior do que o vosso e com
direito a um lugar melhor, sem daí resultar que
vos conteis entre os réprobos. Pois bem!
Colocai-vos mentalmente, por um instante,
nessa situação intermédia, que será a vossa,
como acabastes de reconhecer, e imaginai que
alguém vos venha dizer: Sofreis; não sois tão
felizes quanto poderíeis ser, ao passo que diante
de vós estão seres que gozam de completa
ventura. Quereis mudar na deles a vossa posição?
- Certamente, respondereis; que devemos fazer?
- Quase nada: recomeçar o trabalho mal
executado e executá-lo melhor. - Hesitaríeis em
aceitar, ainda que a poder de muitas existências
de provações? Façamos outra comparação mais
prosaica. Figuremos que a um homem que, sem
ter deixado a miséria extrema, sofre, no entanto,
privações, por escassez de recursos, viessem
dizer: Aqui está uma riqueza imensa de que
podes gozar; para isto só é necessário que
trabalhes arduamente durante um minuto.
Fosse ele o mais preguiçoso da Terra, que sem
hesitar diria: Trabalhemos um minuto, dois
minutos, uma hora, um dia, se for preciso. Que
importa isso, desde que me leve a acabar os
meus dias na fartura? Ora, que é a duração da
vida corpórea, em confronto com a eternidade?
Menos que um minuto, menos que um segundo.
Temos visto algumas pessoas raciocinarem deste
modo: Não é possível que Deus, soberanamente
bom como é, imponha ao homem a obrigação de
recomeçar uma série de misérias e tribulações.
Acharão, porventura, essas pessoas que há mais
bondade em condenar Deus o homem a sofrer
perpetuamente, por motivo de alguns momentos
de erro, do que em lhe facultar meios de reparar
suas faltas? “Dois industriais contrataram dois
operários, cada um dois quais podia aspirar a se
tornar sócio do respectivo patrão.
Aconteceu que esses dois operários certa vez
empregaram muito mal o seu dia, merecendo
ambos ser despedidos. Um dos industriais, não
obstante as súplicas do seu, o mandou embora e
o pobre operário, não tendo achado mais
trabalho, acabou por morrer na miséria.
O outro disse ao seu: Perdeste um dia; deves-me
por isso uma compensação. Executaste mal o teu
trabalho; ficaste a me dever uma reparação.
Consinto que o recomeces. Trata de executá-lo
bem, que te conservarei ao meu serviço e
poderás continuar aspirando à posição superior
que te prometi.” Será preciso perguntemos qual
dos industriais foi mais humano?
Dar-se-á que Deus, que é a clemência mesma,
seja mais inexorável do que um homem?
Alguma coisa de pungente há na ideia de que a
nossa sorte fique para sempre decidida, por
efeito de alguns anos de provações, ainda
quando de nós não tenha dependido o
atingirmos a perfeição, ao passo que
eminentemente consoladora é a ideia oposta,
que nos permite a esperança. Assim, sem nos
pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das
existências, sem preferirmos uma hipótese a
outra, declaramos que, se aos homens fosse
dado escolher, ninguém quereria o julgamento
sem apelação. Disse um filósofo que, se Deus
não existisse, fora mister inventá-lo, para
felicidade do gênero humano. Outro tanto se
poderia dizer sobre a pluralidade das existências.
Mas, conforme atrás ponderamos, Deus
não nos pede permissão, nem consulta os nossos
gostos. Ou isto é, ou não é. Vejamos de que lado
estão as probabilidades e encaremos de outro
ponto de vista o assunto, unicamente como
estudo filosófico, sempre abstraindo do ensino
dos Espíritos.
Se não há reencarnação, só há, evidentemente,
uma existência corporal. Se a nossa atual
existência corpórea é única, a alma de cada
homem foi criada por ocasião do seu
nascimento, a menos que se admita a
anterioridade da alma, caso em que se caberia
perguntar o que era ela antes do nascimento e se
o estado em que se achava não constituía uma
existência sob forma qualquer. Não há meio
termo: ou a alma existia, ou não existia antes do
corpo. Se existia, qual a sua situação? Tinha, ou
não, consciência de si mesma? Se não tinha, é
quase como se não existisse. Se tinha
individualidade, era progressiva, ou estacionária?
Num e noutro caso, a que grau chegara ao tomar
o corpo?
Admitindo, de acordo com a crença vulgar, que a
alma nasce com o corpo, ou, o que vem a ser o
mesmo, que, antes de encarnar, só dispõe de
faculdades negativas, perguntamos: 1º Por que
mostra a alma aptidões tão diversas e
independentes das ideias que a educação lhe fez
adquirir?
2º Donde vem a aptidão extranormal que muitas
crianças em tenra idade revelam, para esta ou
aquela arte, para esta ou aquela ciência,
enquanto outras se conservam inferiores ou
medíocres durante a vida toda?
3º Donde, em uns, as ideias inatas ou intuitivas,
que noutros não existem?
4º Donde, em certas crianças, o instituto precoce
que revelam para os vícios ou para as virtudes,
os sentimentos inatos de dignidade ou de
baixeza, contrastando com o meio em que elas
nasceram?
5º Por que, abstraindo-se da educação, uns
homens são mais adiantados do que outros?
6º Por que há selvagens e homens civilizados? Se
tomardes de um menino hotentote recém-
nascido e o educardes nos nossos melhores
liceus, fareis dele algum dia um Laplace ou um
Newton?
Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver
estes problemas? É fora de dúvida que, ou as
almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais.
Se são iguais, por que, entre elas, tão grande
diversidade de aptidões? Dir-se-á que isso
depende do organismo. Mas, então, achamo-nos
em presença da mais monstruosa e imoral das
doutrinas. O homem seria simples máquina,
joguete da matéria; deixaria de ter a
responsabilidade de seus atos, pois que poderia
atribuir tudo às suas imperfeições físicas. Se
almas são desiguais, é que Deus as criou assim.
Nesse caso, porém, por que a inata superioridade
concedida a algumas?
Corresponderá essa parcialidade à justiça de
Deus e ao amor que Ele consagra igualmente a
todas suas criaturas?
Admitamos, ao contrário, uma série de
progressivas existências anteriores para cada
alma e tudo se explica. Ao nascerem, trazem os
homens a intuição do que aprenderam antes: São
mais ou menos adiantados, conforme o número
de existências que contem, conforme já estejam
mais ou menos afastados do ponto de partida.
Dá-se aí exatamente o que se observa numa
reunião de indivíduos de todas as idades, onde
cada um terá desenvolvimento proporcionado ao
número de anos que tenha vivido. As existências
sucessivas serão, para a vida da alma, o que os
anos são para a do corpo. Reuni, em certo dia,
um milheiro de indivíduos de um a oitenta anos;
suponde que um véu encubra todos os dias
precedentes ao em que os reunistes e que, em
consequência, acreditais que todos nasceram na
mesma ocasião. Perguntareis naturalmente como
é que uns são grandes e outros pequenos, uns
velhos e jovens outros, instruídos uns, outros
ainda ignorantes. Se, porém, dissipando-se a
nuvem que lhes oculta o passado, vierdes a saber
que todos hão vivido mais ou menos tempo, tudo
se vos tornará explicado. Deus, em Sua justiça,
não pode ter criado almas desigualmente
perfeitas. Com a pluralidade das existências, a
desigualdade que notamos nada mais apresenta
em oposição à mais rigorosa equidade: é que
apenas vemos o presente e não o passado. A
este raciocínio serve de base algum sistema,
alguma suposição gratuita? Não. Partimos de um
fato patente, incontestável: a desigualdade das
aptidões e do desenvolvimento intelectual e
moral e verificamos que nenhuma das teorias
correntes o explica, ao passo que uma outra
teoria lhe dá explicação simples, natural e lógica.
Será racional preferir-se as que não explicam
àquela que explica?
À vista da sexta interrogação acima, dirão
naturalmente que o hotentote é de raça inferior.
Perguntaremos, então, se o hotentote é ou não
um homem. Se é, por que a ele e à sua raça
privou Deus dos privilégios concedidos à raça
caucásica? Se não é, por que tentar fazê-lo
cristão? A Doutrina Espírita tem mais amplitude
do que tudo isto. Segundo ela, não há muitas
espécies de homens, há tão-somente cujos
espíritos estão mais ou menos atrasados, porém,
todos suscetíveis de progredir. Não é este
princípio mais conforme à justiça de Deus?
Vimos de apreciar a alma com relação ao seu
passado e ao seu presente. Se a considerarmos,
tendo em vista o seu futuro, esbarraremos nas
mesmas dificuldades.
1ª Se a nossa existência atual é que, só ela,
decidirá da nossa sorte vindoura, quais, na vida
futura, as posições respectivas do selvagem e do
homem civilizado? Estarão no mesmo nível, ou se
acharão distanciados um do outro, no tocante à
soma de felicidade eterna que lhes caiba?
2ª O homem que trabalhou toda a sua vida por
melhorar-se, virá a ocupar a mesma categoria de
outro que se conservou em grau inferior de
adiantamento, não por culpa sua, mas porque
não teve tempo, nem possibilidade de se tornar
melhor?
3ª O que praticou o mal, por não ter podido
instruir-se, será culpado de um estado de coisas
cuja existência em nada dependeu dele?
4ª Trabalha-se continuamente por esclarecer,
moralizar, civilizar os homens. Mas, em
contraposição a um que fica esclarecido, milhões
de outros morrem todos os dias antes que a luz
lhes tenha chegado. Qual a sorte destes últimos?
Serão tratados como réprobos? No caso
contrário, que fizeram para ocupar categoria
idêntica à dos outros?
5ª Que sorte aguarda os que morrem na infância,
quando ainda não puderam fazer nem o bem,
nem o mal? Se vão para o meio dos eleitos, por
que esse favor, sem que coisa alguma hajam
feito para merecê-lo? Em virtude de que
privilégio eles se veem isentos das tribulações da
vida?
Haverá alguma doutrina capaz de resolver esses
problemas? Admitam-se as existências
consecutivas e tudo se explicará conformemente
à justiça de Deus. O que se não pôde fazer numa
existência faz-se em outra. Assim é que ninguém
escapa à lei do progresso, que cada um será
recompensado segundo o seu merecimento real
e que ninguém fica excluído da felicidade
suprema, a que todos podem aspirar, quaisquer
que sejam os obstáculos com que topem no
caminho.
Essas questões facilmente se multiplicariam ao
infinito, porquanto inúmeros são os problemas
psicológicos e morais que só na pluralidade das
existências encontram solução.
Limitamo-nos a formular as de ordem mais
geral. Como quer que seja, alegar-se-á talvez
que a Igreja não admite a doutrina da
reencarnação; que ela subverteria a religião. Não
temos o intuito de tratar dessa questão neste
momento. Basta-nos o havermos demonstrado
que aquela doutrina é eminentemente moral e
racional. Ora, o que é moral e racional não pode
estar em oposição a uma religião que proclama
ser Deus a bondade e a razão por excelência.
Que teria sido da religião, se, contra a opinião
universal e o testemunho da ciência, se houvesse
obstinadamente recusado a render-se à
evidência e expulsado de seu seio todos os que
não acreditassem no movimento do Sol ou nos
seis dias da criação? Que crédito houvera
merecido e que autoridade teria tido, entre povos
cultos, uma religião fundada em erros manifestos
e que os impusesse como artigos de fé? Logo
que a evidência se patenteou, a Igreja,
criteriosamente, se colocou do lado da evidência.
Uma vez provado que certas coisas existentes
seriam impossíveis sem a reencarnação, que, a
não ser por esse meio, não se consegue explicar
alguns pontos do dogma, cumpre admiti-lo e
reconhecer meramente aparente o antagonismo
entre esta doutrina e a dogmática. Mais adiante
mostraremos que talvez seja muito menor do
que se pensa a distância que, da doutrina das
vidas sucessivas, separa a religião e que a esta
não faria aquela doutrina maior mal do que lhe
fizeram as descobertas do movimento da Terra e
dos períodos geológicos, as quais, à primeira
vista, pareceram desmentir os textos sagrados.
Demais, o princípio da reencarnação ressalta de
muitas passagens das Escrituras, achando-se
especialmente formulado, de modo explícito, no
Evangelho:
“Quando desciam da montanha (depois da
transfiguração), Jesus lhes fez esta
recomendação: Não faleis a ninguém do que
acabastes de ver, até que o Filho do homem
tenha ressuscitado, dentre os mortos.
Perguntaram-lhe então seus discípulos: Por que
dizem os escribas ser preciso que primeiro venha
Elias? Respondeu-lhes Jesus: É certo que Elias há
de vir e que restabelecerá todas as coisas. Mas,
eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o
conheceram e o fizeram sofrer como
entenderam. Do mesmo modo darão a morte ao
Filho do homem. Compreenderam então seus
discípulos que era de João Batista que ele lhes
falava.” (São Mateus, cap. XVII.)
Pois que João Batista fora Elias, houve
reencarnação do Espírito ou da alma de Elias no
corpo de João Batista.
Em suma, como quer que opinemos acerca da
reencarnação, quer a aceitemos, quer não, isso
não constituirá motivo para que deixemos de
sofrê-la, desde que ela exista, mau grado a
todas as crenças em contrário. O essencial está
em que o ensino dos Espíritos é eminentemente
cristão; apóia-se na imortalidade da alma, nas
penas e recompensas futuras, na justiça de Deus,
no livre-arbítrio do homem, na moral do Cristo.
Logo, não é antireligioso.
Temos raciocinado, abstraindo, como dissemos,
de qualquer ensinamento espírita que, para
certas pessoas, carece de autoridade. Não é
somente porque veio dos Espíritos que nós e
tantos outros nos fizemos adeptos da pluralidade
das existências. É porque essa doutrina nos
pareceu a mais lógica e porque só ela resolve
questões até então insolúveis.
Ainda quando fosse da autoria de um simples
mortal, tê-la-íamos igualmente adotado e não
houvéramos hesitado um segundo mais em
renunciar às ideias que esposávamos. Em sendo
demonstrado o erro, muito mais que perder do
que ganhar tem o amor-próprio, com o se
obstinar na sustentação de uma ideia falsa.
Assim também, tê-la-íamos repelido, mesmo
que provindo dos Espíritos, se nos parecera
contrária à razão, como repelimos muitas outras,
pois sabemos, por experiência, que não se deve
aceitar cegamente tudo o que venha deles, da
mesma forma que se não deve adotar às cegas
tudo o que proceda dos homens. O melhor título
que, ao nosso ver, recomenda a ideia da
reencarnação é o de ser, antes de tudo, lógica.
Outro, no entanto, ela apresenta: o de a
confirmarem os fatos, fatos positivos e por bem
dizer, materiais, que um estudo atento e
criterioso revela a quem se dê ao trabalho de
observar com paciência e perseverança e diante
dos quais não há mais lugar para a dúvida.
Quando esses fatos se houverem vulgarizado,
como os da formação e do movimento da Terra,
forçoso será que todos se rendam à evidência e
os que se lhes colocaram em oposição ver-se-ão
constrangidos a desdizer-se.
Reconheçamos, portanto, em resumo, que só a
doutrina da pluralidade das existências explica o
que, sem ela, se mantém inexplicável; que é
altamente consoladora e conforme à mais
rigorosa justiça; que constitui para o homem a
âncora de salvação que Deus, por misericórdia,
lhe concedeu.
As próprias palavras de Jesus não permitem
dúvida a tal respeito. Eis o que se lê no
Evangelho de São João, capítulo III:
3. Respondendo a Nicodemos, disse Jesus: Em
verdade, em verdade, te digo que, se um homem
não nascer de novo, não poderá ver o reino de
Deus.
4. Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem
nascer já estando velho? Pode tornar ao ventre de
sua mãe para nascer segunda vez?
5. Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te
digo que, se um homem não renascer da água e
do Espírito, não poderá entrar no reino de Deus.
O que é nascido da carne é carne e o que é
nascido do Espírito é Espírito. Não te admires de
que eu te tenha dito: é necessário que torneis a
nascer. (Ver, adiante, o parágrafo “Ressurreição
da carne”, n° 1010.)
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O LIVRO DOS ESPÍRITOS
222. Não é novo, dizem alguns, a ideia da
reencarnação; ressuscitaram-no da doutrina de
Pitágoras. Nunca dissemos ser de invenção
moderna a Doutrina Espírita.
Constituindo uma lei da Natureza, o Espiritismo
há de ter existido desde a origem dos tempos e
sempre nos esforçamos por demonstrar que dele
se descobrem sinais na antiguidade mais remota.
Pitágoras, como se sabe, não foi o autor do
sistema da metempsicose; ele o colheu dos
filósofos indianos e dos egípcios, que o tinham
desde tempos imemoriais. A ideia da
transmigração das almas formava, pois, uma
crença vulgar, aceita pelos homens mais
eminentes. De que modo a adquiriram? Por uma
revelação, ou por intuição?
Ignoramo-lo Seja, porém, como for, o que não
padece dúvida é que uma ideia não atravessa
séculos e séculos, nem consegue impor-se a
inteligências de escol, se não contiver algo de
sério. Assim, a ancianidade desta doutrina, em
vez de ser uma objeção, seria prova a seu favor.
Contudo, entre a metempsicose dos antigos e a
moderna doutrina da reencarnação, há, como
também se sabe, profunda diferença, assinalada
pelo fato de os Espíritos rejeitarem, de maneira
absoluta, a transmigração da alma do homem
para os animais e reciprocamente.
Portanto, ensinando o dogma da pluralidade das
existências corporais, os Espíritos renovam uma
doutrina que teve origem nas primeiras idades
do mundo e que se conservou no íntimo de
muitas pessoas, até aos nossos dias.
Simplesmente, eles a apresentam de um ponto
de vista mais racional, mais acorde com as leis
progressivas da Natureza e mais de
conformidade com a sabedoria do Criador,
despindo-a de todos os acessórios da
superstição. Circunstância digna de nota é que
não só neste livro os Espíritos a ensinaram no
decurso dos últimos tempos: já antes da sua
publicação, numerosas comunicações da mesma
natureza se obtiveram em vários países,
multiplicando-se depois, consideravelmente.
Talvez fosse aqui o caso de examinarmos por
que os Espíritos não parecem todos de acordo
sobre esta questão. Mais tarde, porém,
voltaremos a este assunto.
Examinaremos de outro ponto de vista a matéria
e, abstraindo de qualquer intervenção dos
Espíritos, deixemo-los de lado, por enquanto,.
Suponhamos que esta teoria nada tenha que ver
com eles; suponhamos mesmo que jamais se
haja cogitado de Espíritos.
Coloquemo-nos, momentaneamente, num
terreno neutro, admitindo o mesmo grau de
probabilidade para ambas as hipóteses, isto é, a
da pluralidade e a da unicidade das existências
corpóreas, e vejamos para que lado a razão e o
nosso próprio interesse nos farão pender.
Muitos repelem a ideia da reencarnação pelo só
motivo de ela não lhes convir. Dizem que uma
existência já lhes chega de sobra e que,
portanto, não desejariam recomeçar outra
semelhante. De alguns sabemos que saltam em
fúria só com o pensarem que tenham de voltar à
Terra. Perguntar-lhes-emos apenas se imaginam
que Deus lhes pediu o parecer, ou consultou os
gostos, para regular o Universo. Uma de duas: ou
a reencarnação existe, ou não existe; se existe,
nada importa que os contrarie; terão que a
sofrer, sem que para isso lhes peça Deus
permissão. Afiguram-se-nos os que assim falam
um doente a dizer: Sofri hoje bastante, não
quero sofrer mais amanhã. Qualquer que seja o
seu mau-humor, não terá por isso que sofrer
menos no dia seguinte, nem nos que se
sucederem, até que se ache curado.
Conseguintemente, se os que de tal maneira se
externam tiverem que viver de novo,
corporalmente, tornarão a viver, reencarnarão.
Nada lhes adiantará rebelarem-se, quais crianças
que não querem ir para o colégio, ou
condenados, para a prisão. Passarão pelo que
têm de passar.
São demasiado pueris semelhantes objeções,
para merecerem mais seriamente examinadas.
Diremos, todavia, aos que as formulam que se
tranquilizem, que a Doutrina Espírita, no tocante
à reencarnação, não é tão terrível como a julgam;
que, se a houvessem estudado a fundo, não se
mostrariam tão aterrorizados; saberiam que
deles dependem as condições da nova existência,
que será feliz ou desgraçada, conforme ao que
tiverem feito neste mundo; que desde agora
poderão elevar-se tão alto que a recaída no
lodaçal não lhes seja mais de temer.
Suponhamos dirigir-nos a pessoas que acreditam
num futuro depois da morte e não aos que criam
para si a perspectiva do nada, ou pretendem que
suas almas se vão afogar num todo universal,
onde perdem a individualidade, como os pingos
da chuva no oceano, o que vem a dar quase no
mesmo. Ora, pois: se credes num futuro
qualquer, certo não admitis que ele seja idêntico
para todos, porquanto de outro modo, qual a
utilidade do bem? Por que haveria o homem de
constranger-se? Por que deixaria de satisfazer a
todas as suas paixões, a todos os seus desejos,
embora a custa de outrem, uma vez que por isso
não ficaria sendo melhor, nem pior? Credes, ao
contrário, que esse futuro será mais ou menos
ditoso ou inditoso, conforme ao que houverdes
feito durante a vida e então desejais que seja tão
afortunado quanto possível, visto que há de
durar pela eternidade, não? Mas, porventura,
teríeis a pretensão de ser dos homens mais
perfeitos que hajam existido na Terra e, pois,
com direito a alcançardes de um salto a suprema
felicidade dos eleitos? Não. Admitis então que há
homens de valor maior do que o vosso e com
direito a um lugar melhor, sem daí resultar que
vos conteis entre os réprobos. Pois bem!
Colocai-vos mentalmente, por um instante,
nessa situação intermédia, que será a vossa,
como acabastes de reconhecer, e imaginai que
alguém vos venha dizer: Sofreis; não sois tão
felizes quanto poderíeis ser, ao passo que diante
de vós estão seres que gozam de completa
ventura. Quereis mudar na deles a vossa posição?
- Certamente, respondereis; que devemos fazer?
- Quase nada: recomeçar o trabalho mal
executado e executá-lo melhor. - Hesitaríeis em
aceitar, ainda que a poder de muitas existências
de provações? Façamos outra comparação mais
prosaica. Figuremos que a um homem que, sem
ter deixado a miséria extrema, sofre, no entanto,
privações, por escassez de recursos, viessem
dizer: Aqui está uma riqueza imensa de que
podes gozar; para isto só é necessário que
trabalhes arduamente durante um minuto.
Fosse ele o mais preguiçoso da Terra, que sem
hesitar diria: Trabalhemos um minuto, dois
minutos, uma hora, um dia, se for preciso. Que
importa isso, desde que me leve a acabar os
meus dias na fartura? Ora, que é a duração da
vida corpórea, em confronto com a eternidade?
Menos que um minuto, menos que um segundo.
Temos visto algumas pessoas raciocinarem deste
modo: Não é possível que Deus, soberanamente
bom como é, imponha ao homem a obrigação de
recomeçar uma série de misérias e tribulações.
Acharão, porventura, essas pessoas que há mais
bondade em condenar Deus o homem a sofrer
perpetuamente, por motivo de alguns momentos
de erro, do que em lhe facultar meios de reparar
suas faltas? “Dois industriais contrataram dois
operários, cada um dois quais podia aspirar a se
tornar sócio do respectivo patrão.
Aconteceu que esses dois operários certa vez
empregaram muito mal o seu dia, merecendo
ambos ser despedidos. Um dos industriais, não
obstante as súplicas do seu, o mandou embora e
o pobre operário, não tendo achado mais
trabalho, acabou por morrer na miséria.
O outro disse ao seu: Perdeste um dia; deves-me
por isso uma compensação. Executaste mal o teu
trabalho; ficaste a me dever uma reparação.
Consinto que o recomeces. Trata de executá-lo
bem, que te conservarei ao meu serviço e
poderás continuar aspirando à posição superior
que te prometi.” Será preciso perguntemos qual
dos industriais foi mais humano?
Dar-se-á que Deus, que é a clemência mesma,
seja mais inexorável do que um homem?
Alguma coisa de pungente há na ideia de que a
nossa sorte fique para sempre decidida, por
efeito de alguns anos de provações, ainda
quando de nós não tenha dependido o
atingirmos a perfeição, ao passo que
eminentemente consoladora é a ideia oposta,
que nos permite a esperança. Assim, sem nos
pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das
existências, sem preferirmos uma hipótese a
outra, declaramos que, se aos homens fosse
dado escolher, ninguém quereria o julgamento
sem apelação. Disse um filósofo que, se Deus
não existisse, fora mister inventá-lo, para
felicidade do gênero humano. Outro tanto se
poderia dizer sobre a pluralidade das existências.
Mas, conforme atrás ponderamos, Deus
não nos pede permissão, nem consulta os nossos
gostos. Ou isto é, ou não é. Vejamos de que lado
estão as probabilidades e encaremos de outro
ponto de vista o assunto, unicamente como
estudo filosófico, sempre abstraindo do ensino
dos Espíritos.
Se não há reencarnação, só há, evidentemente,
uma existência corporal. Se a nossa atual
existência corpórea é única, a alma de cada
homem foi criada por ocasião do seu
nascimento, a menos que se admita a
anterioridade da alma, caso em que se caberia
perguntar o que era ela antes do nascimento e se
o estado em que se achava não constituía uma
existência sob forma qualquer. Não há meio
termo: ou a alma existia, ou não existia antes do
corpo. Se existia, qual a sua situação? Tinha, ou
não, consciência de si mesma? Se não tinha, é
quase como se não existisse. Se tinha
individualidade, era progressiva, ou estacionária?
Num e noutro caso, a que grau chegara ao tomar
o corpo?
Admitindo, de acordo com a crença vulgar, que a
alma nasce com o corpo, ou, o que vem a ser o
mesmo, que, antes de encarnar, só dispõe de
faculdades negativas, perguntamos: 1º Por que
mostra a alma aptidões tão diversas e
independentes das ideias que a educação lhe fez
adquirir?
2º Donde vem a aptidão extranormal que muitas
crianças em tenra idade revelam, para esta ou
aquela arte, para esta ou aquela ciência,
enquanto outras se conservam inferiores ou
medíocres durante a vida toda?
3º Donde, em uns, as ideias inatas ou intuitivas,
que noutros não existem?
4º Donde, em certas crianças, o instituto precoce
que revelam para os vícios ou para as virtudes,
os sentimentos inatos de dignidade ou de
baixeza, contrastando com o meio em que elas
nasceram?
5º Por que, abstraindo-se da educação, uns
homens são mais adiantados do que outros?
6º Por que há selvagens e homens civilizados? Se
tomardes de um menino hotentote recém-
nascido e o educardes nos nossos melhores
liceus, fareis dele algum dia um Laplace ou um
Newton?
Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver
estes problemas? É fora de dúvida que, ou as
almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais.
Se são iguais, por que, entre elas, tão grande
diversidade de aptidões? Dir-se-á que isso
depende do organismo. Mas, então, achamo-nos
em presença da mais monstruosa e imoral das
doutrinas. O homem seria simples máquina,
joguete da matéria; deixaria de ter a
responsabilidade de seus atos, pois que poderia
atribuir tudo às suas imperfeições físicas. Se
almas são desiguais, é que Deus as criou assim.
Nesse caso, porém, por que a inata superioridade
concedida a algumas?
Corresponderá essa parcialidade à justiça de
Deus e ao amor que Ele consagra igualmente a
todas suas criaturas?
Admitamos, ao contrário, uma série de
progressivas existências anteriores para cada
alma e tudo se explica. Ao nascerem, trazem os
homens a intuição do que aprenderam antes: São
mais ou menos adiantados, conforme o número
de existências que contem, conforme já estejam
mais ou menos afastados do ponto de partida.
Dá-se aí exatamente o que se observa numa
reunião de indivíduos de todas as idades, onde
cada um terá desenvolvimento proporcionado ao
número de anos que tenha vivido. As existências
sucessivas serão, para a vida da alma, o que os
anos são para a do corpo. Reuni, em certo dia,
um milheiro de indivíduos de um a oitenta anos;
suponde que um véu encubra todos os dias
precedentes ao em que os reunistes e que, em
consequência, acreditais que todos nasceram na
mesma ocasião. Perguntareis naturalmente como
é que uns são grandes e outros pequenos, uns
velhos e jovens outros, instruídos uns, outros
ainda ignorantes. Se, porém, dissipando-se a
nuvem que lhes oculta o passado, vierdes a saber
que todos hão vivido mais ou menos tempo, tudo
se vos tornará explicado. Deus, em Sua justiça,
não pode ter criado almas desigualmente
perfeitas. Com a pluralidade das existências, a
desigualdade que notamos nada mais apresenta
em oposição à mais rigorosa equidade: é que
apenas vemos o presente e não o passado. A
este raciocínio serve de base algum sistema,
alguma suposição gratuita? Não. Partimos de um
fato patente, incontestável: a desigualdade das
aptidões e do desenvolvimento intelectual e
moral e verificamos que nenhuma das teorias
correntes o explica, ao passo que uma outra
teoria lhe dá explicação simples, natural e lógica.
Será racional preferir-se as que não explicam
àquela que explica?
À vista da sexta interrogação acima, dirão
naturalmente que o hotentote é de raça inferior.
Perguntaremos, então, se o hotentote é ou não
um homem. Se é, por que a ele e à sua raça
privou Deus dos privilégios concedidos à raça
caucásica? Se não é, por que tentar fazê-lo
cristão? A Doutrina Espírita tem mais amplitude
do que tudo isto. Segundo ela, não há muitas
espécies de homens, há tão-somente cujos
espíritos estão mais ou menos atrasados, porém,
todos suscetíveis de progredir. Não é este
princípio mais conforme à justiça de Deus?
Vimos de apreciar a alma com relação ao seu
passado e ao seu presente. Se a considerarmos,
tendo em vista o seu futuro, esbarraremos nas
mesmas dificuldades.
1ª Se a nossa existência atual é que, só ela,
decidirá da nossa sorte vindoura, quais, na vida
futura, as posições respectivas do selvagem e do
homem civilizado? Estarão no mesmo nível, ou se
acharão distanciados um do outro, no tocante à
soma de felicidade eterna que lhes caiba?
2ª O homem que trabalhou toda a sua vida por
melhorar-se, virá a ocupar a mesma categoria de
outro que se conservou em grau inferior de
adiantamento, não por culpa sua, mas porque
não teve tempo, nem possibilidade de se tornar
melhor?
3ª O que praticou o mal, por não ter podido
instruir-se, será culpado de um estado de coisas
cuja existência em nada dependeu dele?
4ª Trabalha-se continuamente por esclarecer,
moralizar, civilizar os homens. Mas, em
contraposição a um que fica esclarecido, milhões
de outros morrem todos os dias antes que a luz
lhes tenha chegado. Qual a sorte destes últimos?
Serão tratados como réprobos? No caso
contrário, que fizeram para ocupar categoria
idêntica à dos outros?
5ª Que sorte aguarda os que morrem na infância,
quando ainda não puderam fazer nem o bem,
nem o mal? Se vão para o meio dos eleitos, por
que esse favor, sem que coisa alguma hajam
feito para merecê-lo? Em virtude de que
privilégio eles se veem isentos das tribulações da
vida?
Haverá alguma doutrina capaz de resolver esses
problemas? Admitam-se as existências
consecutivas e tudo se explicará conformemente
à justiça de Deus. O que se não pôde fazer numa
existência faz-se em outra. Assim é que ninguém
escapa à lei do progresso, que cada um será
recompensado segundo o seu merecimento real
e que ninguém fica excluído da felicidade
suprema, a que todos podem aspirar, quaisquer
que sejam os obstáculos com que topem no
caminho.
Essas questões facilmente se multiplicariam ao
infinito, porquanto inúmeros são os problemas
psicológicos e morais que só na pluralidade das
existências encontram solução.
Limitamo-nos a formular as de ordem mais
geral. Como quer que seja, alegar-se-á talvez
que a Igreja não admite a doutrina da
reencarnação; que ela subverteria a religião. Não
temos o intuito de tratar dessa questão neste
momento. Basta-nos o havermos demonstrado
que aquela doutrina é eminentemente moral e
racional. Ora, o que é moral e racional não pode
estar em oposição a uma religião que proclama
ser Deus a bondade e a razão por excelência.
Que teria sido da religião, se, contra a opinião
universal e o testemunho da ciência, se houvesse
obstinadamente recusado a render-se à
evidência e expulsado de seu seio todos os que
não acreditassem no movimento do Sol ou nos
seis dias da criação? Que crédito houvera
merecido e que autoridade teria tido, entre povos
cultos, uma religião fundada em erros manifestos
e que os impusesse como artigos de fé? Logo
que a evidência se patenteou, a Igreja,
criteriosamente, se colocou do lado da evidência.
Uma vez provado que certas coisas existentes
seriam impossíveis sem a reencarnação, que, a
não ser por esse meio, não se consegue explicar
alguns pontos do dogma, cumpre admiti-lo e
reconhecer meramente aparente o antagonismo
entre esta doutrina e a dogmática. Mais adiante
mostraremos que talvez seja muito menor do
que se pensa a distância que, da doutrina das
vidas sucessivas, separa a religião e que a esta
não faria aquela doutrina maior mal do que lhe
fizeram as descobertas do movimento da Terra e
dos períodos geológicos, as quais, à primeira
vista, pareceram desmentir os textos sagrados.
Demais, o princípio da reencarnação ressalta de
muitas passagens das Escrituras, achando-se
especialmente formulado, de modo explícito, no
Evangelho:
“Quando desciam da montanha (depois da
transfiguração), Jesus lhes fez esta
recomendação: Não faleis a ninguém do que
acabastes de ver, até que o Filho do homem
tenha ressuscitado, dentre os mortos.
Perguntaram-lhe então seus discípulos: Por que
dizem os escribas ser preciso que primeiro venha
Elias? Respondeu-lhes Jesus: É certo que Elias há
de vir e que restabelecerá todas as coisas. Mas,
eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o
conheceram e o fizeram sofrer como
entenderam. Do mesmo modo darão a morte ao
Filho do homem. Compreenderam então seus
discípulos que era de João Batista que ele lhes
falava.” (São Mateus, cap. XVII.)
Pois que João Batista fora Elias, houve
reencarnação do Espírito ou da alma de Elias no
corpo de João Batista.
Em suma, como quer que opinemos acerca da
reencarnação, quer a aceitemos, quer não, isso
não constituirá motivo para que deixemos de
sofrê-la, desde que ela exista, mau grado a
todas as crenças em contrário. O essencial está
em que o ensino dos Espíritos é eminentemente
cristão; apóia-se na imortalidade da alma, nas
penas e recompensas futuras, na justiça de Deus,
no livre-arbítrio do homem, na moral do Cristo.
Logo, não é antireligioso.
Temos raciocinado, abstraindo, como dissemos,
de qualquer ensinamento espírita que, para
certas pessoas, carece de autoridade. Não é
somente porque veio dos Espíritos que nós e
tantos outros nos fizemos adeptos da pluralidade
das existências. É porque essa doutrina nos
pareceu a mais lógica e porque só ela resolve
questões até então insolúveis.
Ainda quando fosse da autoria de um simples
mortal, tê-la-íamos igualmente adotado e não
houvéramos hesitado um segundo mais em
renunciar às ideias que esposávamos. Em sendo
demonstrado o erro, muito mais que perder do
que ganhar tem o amor-próprio, com o se
obstinar na sustentação de uma ideia falsa.
Assim também, tê-la-íamos repelido, mesmo
que provindo dos Espíritos, se nos parecera
contrária à razão, como repelimos muitas outras,
pois sabemos, por experiência, que não se deve
aceitar cegamente tudo o que venha deles, da
mesma forma que se não deve adotar às cegas
tudo o que proceda dos homens. O melhor título
que, ao nosso ver, recomenda a ideia da
reencarnação é o de ser, antes de tudo, lógica.
Outro, no entanto, ela apresenta: o de a
confirmarem os fatos, fatos positivos e por bem
dizer, materiais, que um estudo atento e
criterioso revela a quem se dê ao trabalho de
observar com paciência e perseverança e diante
dos quais não há mais lugar para a dúvida.
Quando esses fatos se houverem vulgarizado,
como os da formação e do movimento da Terra,
forçoso será que todos se rendam à evidência e
os que se lhes colocaram em oposição ver-se-ão
constrangidos a desdizer-se.
Reconheçamos, portanto, em resumo, que só a
doutrina da pluralidade das existências explica o
que, sem ela, se mantém inexplicável; que é
altamente consoladora e conforme à mais
rigorosa justiça; que constitui para o homem a
âncora de salvação que Deus, por misericórdia,
lhe concedeu.
As próprias palavras de Jesus não permitem
dúvida a tal respeito. Eis o que se lê no
Evangelho de São João, capítulo III:
3. Respondendo a Nicodemos, disse Jesus: Em
verdade, em verdade, te digo que, se um homem
não nascer de novo, não poderá ver o reino de
Deus.
4. Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem
nascer já estando velho? Pode tornar ao ventre de
sua mãe para nascer segunda vez?
5. Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te
digo que, se um homem não renascer da água e
do Espírito, não poderá entrar no reino de Deus.
O que é nascido da carne é carne e o que é
nascido do Espírito é Espírito. Não te admires de
que eu te tenha dito: é necessário que torneis a
nascer. (Ver, adiante, o parágrafo “Ressurreição
da carne”, n° 1010.)
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