14 de fev. de 2014

Estudo sobre a Natureza do Cristo




Autor: Allan Kardec

I - Fonte das provas da natureza do Cristo

A questão da natureza do Cristo foi debatida
desde os primeiros séculos do Cristianismo, e
pode-se dizer que não está ainda resolvida, uma
vez que ainda é discutida em nossos dias. Foi a
diferença de opinião sobre este ponto, que deu
nascimento à maioria das seitas que dividiram a
Igreja há dezoito séculos, e é notável que todos
os chefes dessas seitas foram bispos ou
membros do clero com diversos títulos. Por
consegüinte, eram homens esclarecidos, a
maioria escritores de talento, nutridos na ciência
teosófica, que não achavam concludentes as
razões evocadas em favor do dogma da
divindade do Cristo; não obstante, então como
hoje, as opiniões se formaram sobre abstrações,
mais do que sobre fatos, procurou-se,
sobretudo, o que o dogma poderia ter de
plausível ou de irracional, e, geralmente, se
negligenciou, de parte a parte, em fazer ressaltar
os fatos que poderiam lançar, sobre a questão,
uma luz decisiva.

Mas onde encontrar esses fatos se isso não for
nos atos e nas palavras de Jesus?

Jesus, nada tendo escrito, seus únicos
historiadores foram os apóstolos que, eles não
mais, nada escreveram quando vivos; não tendo
nenhuma história profana contemporânea falado
dele, não existe sobre a sua vida e a sua
doutrina, nenhum outro documento senão os
Evangelhos; portanto, é ali somente que é
necessário procurar a chave do problema. Todos
os escritos posteriores, sem disso excetuar os de
São Paulo, não são, e não podem ser, senão
comentários ou apreciações, reflexo de opiniões
pessoais, freqüentemente contraditórias, que não
poderiam, em nenhum caso, ter a autoridade do
relato daqueles que receberam as instruções
diretamente do Mestre.

Sobre essa questão, como sobre as de todos os
dogmas em geral, o acordo dos Pais da Igreja, e
outros escritores sacros, não poderia ser evocado
como argumento preponderante, nem como uma
prova irrecusável em favor de sua opinião, tendo
em vista que nenhum deles pôde citar um único
fato, fora do Evangelho, concernente a Jesus,
nenhum deles descobriu documentos novos
desconhecidos de seus predecessores.

Os autores sacros não puderam senão voltar
sobre o mesmo círculo, dar a sua apreciação
pessoal, tirar conseqüências de seu ponto de
vista, comentar sob novas formas, e com mais ou
menos desenvolvimento, as opiniões
contraditórias. Todos os do mesmo partido
deveram escrever no mesmo sentido, se não nos
mesmos termos, sob pena de serem declarados
heréticos, como o foram Orígenes e tantos
outros. Naturalmente, a Igreja não colocou, entre
seus Pais, senão os escritores ortodoxos do seu
ponto de vista; ela não exaltou, santificou e
colecionou senão aqueles que tomaram a sua
defesa, ao passo que rejeitou os outros e
destruiu os seus escritos tanto quanto possível.
O acordo entre os Pais da Igreja, portanto, nada
tem de concludente, uma vez que é uma
unanimidade de escolha formada pela eliminação
dos elementos contrários. Se se leva em
consideração tudo o que foi escrito pró e contra,
não se sabe muito de que lado penderia a
balança.

Isso nada tira ao mérito pessoal dos
sustentadores da ortodoxia, nem ao seu valor
como escritores e homens conscienciosos; foram
os advogados de uma mesma causa, que
defenderam com incontestável talento, e
deveriam, forçosamente, chegar às mesmas
conclusões. Longe de querer denegri-los, em
que quer que seja, quisemos simplesmente
refutar o valor das conseqüências que se
pretende tirar de seu acordo.

No exame que vamos fazer, da questão da
divindade do Cristo, pondo de lado as sutilezas
da escolástica que não serviram senão para
embrulhar em lugar de elucidar, nos apoiaremos
exclusivamente sobre os fatos que ressaltam do
texto do Evangelho, e que, examinados
friamente, conscienciosamente, sem idéia
preconcebida, fornecem superabundantemente
todos os meios de convicção que se possam
desejar. Ora, entre esses fatos, não há de mais
preponderante, nem de mais concludentes,
senão as palavras mesmas do Cristo, palavras
que não se saberia recusar sem infirmar a
veracidade dos apóstolos. Pode-se interpretar de
diferentes maneiras uma palavra, uma alegoria;
mas afirmações precisas, sem ambigüidade, cem
vezes repetidas, não poderiam ter um duplo
sentido. Nenhum outro, senão Jesus, pode
pretender saber melhor do que ele o que quis
dizer, como ninguém pode pretender estar
melhor informado do que ele sobre a sua própria
natureza: quando ele comenta as suas palavras, e
as explica, para evitar todo equívoco, deve-se
confiar nele, a menos lhe neguemos a
superioridade que se lhe atribui, e substituamos
a sua própria inteligência. Se foi obscuro em
certos pontos, quando se serviu de linguagem
figurada, sobre o que toca à sua pessoa não há
equívoco possível. Antes do exame das palavras,
vejamos os atos.

II. - A divindade do Cristo está provada pelos
milagres?

Segundo a Igreja, a divindade do Cristo está
estabelecida, principalmente pelos milagres,
como testemunho de um poder sobrenatural.
Esta consideração pôde ter um certo peso numa
época em que o maravilhoso era aceito sem
exame; mas hoje, que a ciência levou as suas
investigações até as leis da Natureza, os milagres
encontram mais incrédulos do que crentes; e o
que não contribuiu pouco para o seu descrédito,
foi o abuso das imitações fraudulentas e a
exploração que deles se fez. A fé nos milagres
foi destruída pelo próprio uso que dela se fez;
disso resultou que os do Evangelho são agora
considerados, por muitas pessoas, como
puramente legendários.

A Igreja, aliás, ela mesma, retira aos milagres
toda a sua importância, como prova da divindade
do Cristo, declarando que o demônio também
pode fazê-los tão prodigiosos quanto ele:
porque se o demônio tem um tal poder, fica
evidente que os fatos desse gênero não têm, de
nenhum modo, um caráter exclusivamente
divino; se ele pode fazer coisas admiráveis para
seduzir mesmo os eleitos, como simples mortais
poderiam distinguir os bons milagres dos maus,
e não há a temer que, vendo fatos similares, não
confundam Deus e Satanás?

Dar a Jesus um tal rival em habilidade era uma
grande falta de jeito; mas, pelo que respeita a
contradições e inconseqüências, não eram
olhadas de tão perto em uma época em que os
fiéis ter-se-iam feito um caso de consciência em
pensar por eles mesmos, e de discutir o menor
artigo imposto à sua crença; então, não se
contava com o progresso e não se pensava que o
reino da fé cega e ingênua, reino cômodo como o
do bel prazer, pudesse ter um termo. O papel,
tão preponderante que a Igreja se obstinou em
dar ao demônio, teve conseqüências desastrosas
para a fé, à medida que os homens se sentiram
capazes de ver pelos próprios olhos. O demônio,
que se explorou com sucesso durante um tempo,
tornou-se o machado posto ao velho edifício das
crenças, e uma das principais causas da
incredulidade; pode-se dizer que a Igreja, se
fazendo dele um auxiliar indispensável,
alimentou em seu seio aquele que deveria virar-
se contra ela e miná-la em seus fundamentos.

Uma outra consideração não menos grave, é que
os fatos miraculosos não são o privilégio
exclusivo da religião cristã: não há, com efeito,
uma religião idólatra ou pagã, que não teve os
seus milagres, tão maravilhosos e tão autênticos,
para os adeptos, quanto os do cristianismo. A
Igreja se tirou o direito de constatá-los,
atribuindo às potências infernais o poder de
produzi-los.

O caráter essencial do milagre, no sentido
teológico, é ser uma exceção nas leis da
Natureza, e, por consegüinte, inexplicável por
essas mesmas leis. Desde o instante que um fato
pode se explicar, e que se ligue a uma causa
conhecida, cessa de ser milagre. Assim é que as
descobertas da ciência fizeram entrar no domínio
do natural, certos efeitos qualificados de
prodígios enquanto a causa ficou ignorada. Mais
tarde, o conhecimento do princípio espiritual, da
ação dos fluidos sobre a economia, do mundo
invisível no meio do qual vivemos, das
faculdades da alma, da existência e das
propriedades do perispírito, deu a chave dos
fenômenos de ordem psíquica, e provou que não
são, não mais do que os outros, derrogações às
leis da Natureza, mas que, ao contrário, delas
são aplicações freqüentes. Todos os efeitos de
magnetismo, de sonambulismo, de êxtase, de
dupla vista, de hipnotismo, de catalepsia, de
anestesia, de transmissão do pensamento, de
presciência, de curas instantâneas, de
possessões, de obsessões, de aparições e de
transfigurações, etc., que constituem a quase
totalidade dos milagres do Evangelho, pertencem
a essa categoria de fenômenos.

Sabe-se agora que esses efeitos são o resultado
de aptidões e de disposições fisiológicas
especiais; que se produziram em todos os
tempos, entre todos os povos, e puderam ser
considerados como sobrenaturais sob o mesmo
título de todos aqueles cuja causa era
incompreendida. Isso explica por que todas as
religiões tiveram os seus milagres, que não são
outros senão os fatos naturais, mas quase
sempre amplificados ao absurdo pela
credulidade, a ignorância e a superstição, e que
os conhecimentos atuais reduziram ao seu justo
valor, permitindo levá-los em conta de lenda.

A possibilidade da maioria dos fatos que o
Evangelho cita como tendo sido realizados por
Jesus, está hoje completamente demonstrada
pelo Magnetismo e pelo Espiritismo, enquanto
fenômenos naturais. Uma vez que se produzem
sob os nossos olhos, seja espontaneamente, seja
por provocação, não há nada de anormal em que
Jesus possuísse faculdades idênticas às de
nossos magnetizadores, curadores, sonâmbulos,
videntes, médiuns, etc. Desde o instante que
essas mesmas faculdades se encontram, em
diferentes graus, numa multidão de indivíduos
que nada têm de divino, que são encontradas
mesmo entre os heréticos e os idólatras, elas não
implicam, em nada, uma natureza sobre-
humana.

Se Jesus qualificava, ele mesmo, os seus atos de
milagres, é que nisso, como em muitas outras
coisas, devia apropriar a sua linguagem aos
conhecimentos de seus contemporâneos; como
estes poderiam aprender uma nuança de palavra
que não é ainda compreendida por todo o
mundo? Para o vulgo, as coisas extraordinárias
que ele fazia, e que pareciam sobrenaturais,
naquele tempo e mesmo muito mais tarde, eram
milagres; não podia dar-lhe um outro nome. Um
fato digno de nota é que deles se serviu para
afirmar a missão que tinha de Deus, segundo as
suas próprias expressões, mas disso jamais se
prevaleceu para se atribuir o poder divino (1).

(1) Para o desenvolvimento completo da questão
dos milagres, ver A Gênese segundo o
Espiritismo, capítulos XIII e seguintes, onde são
explicados, pelas leis naturais, todos os milagres
do Evangelho.

É necessário, pois, riscar os milagres das provas
sobre as quais se pretende fundar a divindade da
pessoa do Cristo; vejamos agora se as
encontramos em suas palavras.

III. - Divindade de Jesus está provada pelas suas
palavras?

Dirigindo-se aos discípulos, que entraram em
disputa, para saber qual dentre eles era o maior;
e lhes disse pegando uma criança e colocando-a
junto a si:

"Quem me recebe, recebe aquele que me enviou;
porque aquele que é o menor entre vós, é o
maior." (São Lucas, cap. IX, v. 48.)

"Quem recebe em meu nome uma criancinha
como esta, me recebe, e quem me recebe, não
recebe só a mim, mas recebe aquele que me
enviou." (São Marcos, cap. IX, v. 36.)

"Jesus lhes disse, pois: "Se Deus fosse o vosso
Pai, me amaríeis, porque foi de Deus que eu saí,
e que é de sua parte que vim; porque não vim
por mim mesmo, mas foi ele quem me enviou."
(São João, cap. VIII, v. 42.)

"Jesus lhes disse, pois: "Estou ainda convosco por
um pouco de tempo, e em seguida vou para
aquele que me enviou." (São João, cap. VII, v. 33.)

"Aquele que vos escuta me escuta; aquele que
vos despreza me despreza, e quem me despreza,
despreza aquele que me enviou." (São João, cap.
X, v. 16.)

O dogma da divindade de Jesus está fundado
sobre a igualdade absoluta entre a sua pessoa e
Deus, uma vez que é o próprio Deus: é um artigo
de fé; ora, estas palavras, tão freqüentemente
repetidas por Jesus: Aquele que me enviou,
testemunham não somente quanto a dualidade
das pessoas, mas, ainda, como dissemos,
excluem a igualdade absoluta entre elas; porque
aquele que é enviado, necessariamente, está
subordinado àquele que envia; obedecendo, faz
ato de submissão. Um embaixador, falando de
seu soberano, dirá: Meu senhor, aquele que me
enviou; mas se é o soberano em pessoa que vem,
ele falará em seu próprio nome e não dirá:
Aquele que me enviou, porque não se pode
enviar a si mesmo. Jesus o disse, em termos
categóricos por estas palavras: eu não vim por
mim mesmo, mas foi ele quem me enviou.

Estas palavras: Aquele que me despreza,
despreza aquele que me enviou, não implicam,
de nenhum modo, a igualdade e ainda menos a
identidade; em todos os tempos, o insulto feito a
um embaixador era considerado como feito ao
próprio soberano. Os apóstolos tinham a palavra
de Jesus, como Jesus tinha a de Deus; quando
lhes disse: Aquele que vos escuta me escuta, não
entendia dizer que seus apóstolos e ele não
faziam senão uma única e mesma pessoa, igual
em todas as coisas.

A dualidade de pessoas, assim como o estado
secundário e subordinado de Jesus, com relação
a Deus, ressaltam, além disso, sem equívoco, das
passagens seguintes:

"Fostes vós que permanecestes sempre firmes
comigo nas minhas tentações. – Por isso eu vos
preparo o Reino, como meu pai mo preparou, – a
fim de que comais e bebais à minha mesa no
meu reino, e que vos senteis sobre os tronos
para julgar as doze tribos de Israel." (São Lucas,
cap. XXII, v. 28, 29 e 30.)

"Por mim eu digo o que vi na casa de meu Pai,
fazeis vós o que vistes na casa de vosso pai."
(São João, cap. VIII, v. 38.)

"Ao mesmo tempo apareceu uma nuvem que os
cobriu, e saiu dessa nuvem uma voz que fez
ouvir estas palavras: Este é meu filho bem-
amado; escutai-o." (Transfigur. São Marcos, cap.
IX, v. 6.)

"Ora, quando o filho do homem vier em sua
majestade, acompanhado de todos os anjos,
sentar-se-á sobre o trono de sua glória; – e
todas as nações estando reunidas, separará umas
das outras, como o pastor separa as ovelhas dos
bodes, – e colocará as ovelhas à sua direita e os
bodes à sua esquerda. – Então, o Rei dirá àqueles
que estarão à sua direita: Vinde, vós que fostes
abençoados por meu Pai, possuir o reino que vos
foi preparado desde o começo do mundo." (São
Mateus, cap. XXV, v. 31 a 34.)

"Quem me confessar e me reconhecer diante dos
homens, eu o reconhecerei e o confessarei
também diante de meu pai que está nos céus; – e
quem me renunciar diante dos homens, eu o
renunciarei também, eu mesmo, diante de meu
pai que está nos céus." (São Mateus, cap. X, v.
32, 33.)

"Ora, eu vos declaro que quem me confessar e
me reconhecer diante dos homens, o filho do
homem o reconhecerá também diante dos anjos
de Deus; mas se alguém me renunciar diante dos
homens, eu o renunciarei também diante dos
anjos de Deus." (São Lucas, cap. XII, v. 8, 9.)

"Mas se alguém se envergonhar de mim e de
minhas palavras, o filho do homem se
envergonhará também dele, quando vier em sua
glória e na de seu pai e dos santos anjos." (São
Lucas, cap. IX, v. 26.)

Nestas duas últimas passagens, Jesus parecia
mesmo colocar acima dele os santos anjos,
compondo o tribunal celeste, diante do qual seria
o defensor dos bons e o acusador dos maus.

"Mas por aquilo que é de estar sentado à minha
direita ou à minha esquerda, não é a mim, de
nenhum modo, que cabe vo-lo dar, mas será por
aquele a quem meu Pai preparou." (São Mateus,
cap. XX, v. 23.)

"Ora, os Fariseus estando reunidos, Jesus lhes fez
esta pergunta – e lhes disse: "Que vos parece do
Cristo? De quem é filho? Eles lhe responderam:
De David. – E como, pois, lhes disse, David
chama-o em espírito o seu Senhor com estas
palavras: O Senhor disse ao meu Senhor: Sentai-
vos à minha direita até que reduza os vossos
inimigos a vos servir de escabelo? Se, pois, David
chama-o seu Senhor, como é seu filho? "(São
Mateus, cap. XXII, v. 41 a 45.)

"Mas Jesus, ensinando no templo, lhes disse:
Como os escribas dizem que o Cristo é o filho de
David, – uma vez que David, ele mesmo, disse ao
meu Senhor: Sentai-vos à minha direita até que
haja reduzido vossos inimigos a vos servir de
escabelo? – Depois, portanto, que David o chama,
ele mesmo, seu senhor, como é seu filho? "(São
Marcos, cap. XII, v. 35, 36, 37. – São Lucas, cap.
XX, v. 41 a 44.)

Jesus consagra, com estas palavras, o princípio
da diferença hierárquica que existe entre o Pai e
o Filho. Jesus podia ser o filho de David por
filiação corpórea, e como descendente de sua
raça, foi porque teve o cuidado de ajuntar:
"Como o chama em espírito, seu senhor? " Se há
uma diferença hierárquica entre o pai e o filho;
Jesus, como filho de Deus, não pode ser o igual
de Deus.

Jesus confirma essa interpretação e reconhece
sua inferioridade em relação a Deus, em termos
que não deixam equívoco possível:

"Ouvistes o que vos disse:" Eu me vou, e volto a
vós. Se me amais, vos alegrareis de que vou para
meu Pai, porque meu Pai É MAIOR DO QUE EU."
(São João, cap. XIV, v. 28).

"Então um jovem se aproxima e lhe diz: Bom
mestre, que bem é necessário que eu faça para
adquirir a vida eterna? – Jesus lhe respondeu:
"Por que me chamais bom? Não há senão Deus
que seja bom. Se quereis entrar na vida, guardai
os mandamentos." (São Mateus, cap. XIX, v. 16,
17. – São Marcos, cap. X, v. 17, 18, – São Lucas,
cap. XVIII, v. 18, 19.)

Não somente Jesus não se deu, em nenhuma
circunstância, por ser o igual de Deus, mas aqui
ele afirma positivamente o contrário, considera-
se como inferior em bondade; ora, declarar que
Deus está acima dele pelo poder e suas
qualidades morais, é dizer que ele mesmo não é
Deus. As passagens seguintes vêm em apoio
destas, e são também explícitas.

"Não falei, de nenhum modo, de mim mesmo;
mas meu Pai, que me enviou, foi quem me
prescreveu, por seu poder, o que devo dizer, e
como devo falar; – e eu sei que o seu poder é a
vida eterna; o que eu digo, pois, o digo segundo
o que meu Pai mo ordenou." (São João, cap. XII,
v. 49, 50.)

"Jesus lhes respondeu: "Minha doutrina não é
minha doutrina, mas a doutrina daquele que me
enviou. – Se alguém quer fazer a vontade de
Deus, reconhecerá se a minha doutrina é dele, ou
se falo de mim mesmo. – Aquele que fala de seu
próprio movimento procura sua própria glória,
mas aquele que procura a glória de quem o
enviou é verídico, e nele, de nenhum modo, há
injustiça." (São João, cap. VII, v. 16, 17, 18.)

"Aquele que não me ama nada, não guarda,
minha palavra; e a palavra que ouvistes não foi a
minha palavra em nada, mas a de meu Pai que
me enviou.’ (São João, cap. XIV, v. 24.)

"Não credes que estou em meu Pai e que meu Pai
está em mim? O que vos digo, não vo-lo digo por
mim mesmo; mas meu Pai, que mora em mim
faz, ele mesmo, as obras que eu faço." (São João,
cap. XIV, v. 10.)

"O céu e a Terra passarão, mas as minhas
palavras não passarão. – Pelo que é do dia e da
hora, o homem não o saiba, não, nem mesmo os
anjos que estão no céu, nem mesmo o Filho, mas
somente o Pai. "(São Marcos, cap. XIII. v. 32. –
São Mateus, cap. XXIV v. 35, 36.) .

"Jesus lhes disse, pois: "Quando houverdes
levantado ao alto o filho do homem, então
conhecereis o que sou, porque eu não faço nada
de mim mesmo, não digo senão o que meu Pai
me ensinou; e aquele que me enviou está
comigo, e de modo nenhum me deixou só,
porque faço sempre o que lhe é agradável." (São
João, cap. VIII, v. 28, 29.)

"Desci do céu não para fazer a minha vontade,
mas para fazer a vontade daquele que me
enviou." (São João, cap. VI, v. 38.)

Não posso nada fazer de mim mesmo. Julgo
segundo o que entendo, e meu julgamento é
justo porque não procuro minha vontade, mas a
vontade daquele que me enviou." (São João, cap.
V, v. 30.)

"Mas, por mim, tenho um testemunho maior do
que o de João, porque as obras que meu Pai me
deu o poder de fazer, as obras, digo eu, que
faço, dão testemunho de mim, que foi meu Pai
que me enviou." (São João, cap. V, v. 36.)

"Mas agora procurais me fazer morrer, eu que
vos disse a verdade que aprendi de Deus, foi o
que Abraão nunca fez." (São João, cap. VIII, v.
40.)

Desde então, que ele não disse nada de si
mesmo; que a doutrina que ensinou não é a sua,
mas que a tem de Deus, que lhe ordenou vir
fazê-la conhecer; que não faz senão o que Deus
lhe deu o poder de fazer; que a verdade que
ensina, ele aprendeu de Deus, à vontade de
quem está submetido; é que não é o próprio
Deus, mas seu enviado, seu messias e seu
subordinado.

É impossível recusar, de maneira mais positiva,
toda assimilação à pessoa de Deus, e de
determinar seu principal papel em termos mais
precisos. Não estão aí pensamentos ocultos sob
o véu da alegoria, e que não se descobrem senão
à força de interpretação: é o sentido próprio,
expresso sem ambigüidade.

Se se objetasse que Deus, não querendo se fazer
conhecer na pessoa de Jesus, enganasse sobre a
sua individualidade, poder-se-ia perguntar sobre
o quê está fundada essa opinião, e quem tem
autoridade para sondar o fundo de seu
pensamento, e dar, às suas palavras, um sentido
contrário àquele que elas exprimem? Uma vez
que, quando vivo, ninguém o considerava como
Deus, mas era olhado, ao contrário, como um
messias, se não quisesse ser conhecido pelo que
era, bastar-lhe-ia nada dizer; de sua afirmação
espontânea é preciso concluir que ele não era
Deus, ou que, se o era, voluntariamente e sem
utilidade, disse uma coisa falsa.

É de notar-se que São João, aquele dos
Evangelistas sobre a autoridade de quem mais se
apoiou para estabelecer o dogma da divindade
do Cristo, seja precisamente o que encerra os
argumentos contrários mais numerosos e os
mais positivos; pode-se disso convencer pela
leitura das passagens seguintes, que não
acrescentam nada, é verdade, às provas já
citadas, mas vêm em seu apoio, porque delas
ressaltam evidentemente a dualidade e a
desigualdade das pessoas.

"Por causa disso, os Judeus perseguiam Jesus e
procuravam fazê-lo morrer, porque fizera essas
coisas no Sábado. – Mas Jesus lhes disse: Meu pai
age até o presente, e eu ajo também. (São João,
cap. V, v. 16, 17.)

"Porque o Pai não julga ninguém; mas dá todo
poder de julgar ao Filho, – a fim de que todos
honrem o Filho, como honram o Pai. Aquele que
não honra em nada o Filho, não honra em nada o
Pai que o enviou.

Em verdade, em verdade vos digo, aquele que
ouve a minha palavra, e que crê naquele que me
enviou, tem a vida eterna, e não cai, na
condenação; mas já passou da morte à vida."

"Em verdade, em verdade vos digo, a hora vem, e
ela já veio, em que os mortos ouvirão a voz do
Filho de Deus, e aqueles que ouvirão, viverão;
porque como o Pai tem a vida em si mesmo,
também deu ao Filho ter a vida nele mesmo, – e
lhe deu o poder de julgar, porque é o Filho do
homem. "(São João, cap. V, v. 22 a 27.)

"E o Pai que me enviou, ele mesmo, tem dado
testemunho de mim. Jamais ouvistes a sua voz,
nem vistes a sua face. E sua palavra não
permanecerá em vós, porque não credes naquele
que ele enviou." (São João, cap. V, v. 37,38.)

"E quando eu julgar, o meu julgamento será
digno de fé, porque não estou só; mas meu Pai,
que me enviou, está comigo." (São João, cap. VIII,
v. 16.)

Jesus, tendo dito essas coisas, levou os olhos ao
céu e disse: "Meu Pai, a hora é chegada; glorificai
vosso Filho, a fim de que vosso Filho vos
glorifique. – Como lhe deste poder sobre todos
os homens, a fim de que dê a vida eterna a todos
aqueles que lhe destes. – Ora, a vida eterna
consiste em vos conhecer, a vós que sois O
ÚNICO DEUS verdadeiro, e a Jesus Cristo que
enviastes.

"Eu vos glorifiquei sobre a Terra; acabei a obra
da qual me encarregastes. – E vós, meu Pai,
glorificai-me, pois, agora em vós mesmos, dessa
glória que tive em vós antes que o mundo fosse.

"Logo eu não estarei mais no mundo; mas, por
eles, estão ainda no mundo, e eu dele retorno a
vós. Pai santo, conservai em vosso nome aqueles
que me destes, a fim de que sejam um como
nós."

"Eu lhes dei vossa palavra, e o mundo os odiou,
porque não são em nada do mundo, como eu,
não sou, eu mesmo, do mundo."

"Santificai-os na verdade. A vossa palavra é a
própria verdade. – Assim como vós me enviastes
ao mundo, eu também os enviei ao mundo, – e
eu me santifico, a mim mesmo, por eles, a fim de
que sejam também santificados na verdade. "

"Eu não peço por eles somente, mas ainda por
aqueles que devem crer em mim pela sua
palavra; – a fim de que estejam todos juntos,
como vós, meu Pai, estais em mim e eu em vós;
que eles, sejam do mesmo modo, um em nós, a
fim de que o mundo creia que me enviastes."

"Meu Pai, desejo que lá onde estou, aqueles que
me destes ali estejam também comigo; a fim de
que contemplem minha glória, que me destes,
porque me amastes antes da criação do mundo."

"Pai justo, o mundo em nada vos conheceu; mas
eu, eu vos conheci: e estes conheceram que me
enviastes. – Eu lhes fiz conhecer vosso nome e o
farei conhecer ainda, a fim de que o amor, com o
qual me amastes, esteja neles, e que eu próprio
o esteja neles." (São João, cap. XVII, v. 1 a 5, 11 a
14, de 17 a 26, Prece de Jesus.)

"É por isso que meu Pai me ama, porque deixo a
minha vida para retomá-la. – Ninguém ma
arrebata, mas sou eu que a deixo por mim
mesmo; tenho o poder de deixá-la e tenho o
poder de retomá-la. É o poder que recebi de meu
Pai." (São João, cap. X, v. 17, 18.)

"Eles tiraram a pedra, e Jesus, levantando os
olhos para o alto, disse estas palavras: Meu Pai,
eu vos dou graça pelo que me atendestes. – Por
mim, sabia que me atenderíeis sempre; mas digo
isso para esse povo que me cerca, a fim de que
creia que foi vós que me enviastes." (Morte de
Lázaro, São João, cap. XI, v. 41, 42.)

"Eu não vos falarei muito mais, porque o príncipe
deste mundo vai chegar, embora não tenha nada
em mim que lhe pertença: mas a fim de que o
mundo conheça que amo meu Pai, e que faço o
que meu Pai me ordenou." (São João, cap. XIV, v.
30 e 31.)

"Se guardardes meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, como eu mesmo
guardei os mandamentos de meu Pai, e
permaneço em seu amor." (São João, cap. XV, v.
10.)

"Então Jesus, lançando uma grande exclamação,
disse: Meu Pai, reponho minha alma em vossas
mãos. E, pronunciando estas palavras, expirou."
(São Lucas, cap. XXIII, v. 46.)

Uma vez que Jesus, ao morrer, repunha a sua
alma entre as mãos de Deus, tinha, portanto,
uma alma distinta de Deus, submissa a Deus,
portanto, não era o próprio Deus.

As palavras seguintes dão testemunho de uma
certa fraqueza humana, de uma aprensão da
morte e dos sofrimentos que Jesus vai suportar,
e que contrasta com a natureza, essencialmente
divina, que se lhe atribui; mas elas testemunham,
ao mesmo tempo, uma submissão que é a do
inferior ao superior.

"Então, Jesus chegou num lugar chamado
Getsêmani; e disse aos seus discípulos: Sentai-
vos aqui enquanto vou ali para orar. – E tendo
tomado consigo Pedro e os dois filhos de
Zebedeu, começou a se entristecer e a estar
numa grande aflição. Então, lhes disse: Minha
alma está triste até à morte; permanecei aqui e
velai comigo. – e indo um pouco mais longe, se
prosternou o rosto contra a terra, pedindo e
dizendo: Meu Pai, se for possível, faça com que
este cálice se afaste de mim; não obstante, que
isso seja não como eu o quero, mas como o
quereis. – Veio em seguida para os seus
discípulos, e tendo-os encontrado dormindo,
disse a Pedro: O quê! Não pudestes velar uma
meia hora comigo? – Velai e orai, a fim de que
não cairdes, na tentação. O Espírito está pronto,
mas a carne é fraca. – Foi-se ainda orar uma
segunda vez, dizendo: "Meu Pai, se este cálice
não pode passar sem que eu o beba, que a vossa
vontade seja feita." (Jesus no Jardim das
Oliveiras. (São Mateus, cap. XXVI, v. de 36 a 42.)

"Então, lhes disse: Minha alma está triste até à
morte; permanecei aqui e velai. – E, tendo ido um
pouco mais longe, se prosternou contra a terra,
pedindo que, se fosse possível, essa hora se
afastasse dele. – E dizia: Abba, meu Pai, tudo vos
é possível, transportai este cálice para longe de
mim; contudo, que a vossa vontade seja feita e
não a minha." (São Marcos, cap. XIV, v. 34, 35,
36.)

"Quando chegou naquele lugar, lhes disse: Orai a
fim de que não sucumbais em nada à tentação. –
E estando longe deles em torno de um lanço de
pedra, pôs-se de joelhos, dizendo: Meu Pai, se
quereis, afastai este cálice de mim; contudo, que
isso não seja minha vontade que se faça, mas a
vossa. – Então apareceu-lhe um anjo do céu que
veio fortificá-lo. – E, tendo caído em agonia,
redobrou as suas preces. – E lhe veio um suor de
gotas de sangue que corria até a terra." (São
Lucas, cap. XXII, v. de 40 a 44.)

E na nona hora, Jesus lançou um grande grito,
dizendo: Eli! Eli! Lamma Sabachthani? quer dizer:
meu Deus! meu Deus! por que me abandonastes?
(São Mateus, cap. XXVII, v. 46.)

"E na nona hora, Jesus lançou um grande grito,
dizendo: Meu Deus! Meu Deus! Por que me
abandonastes?" (São Marcos, cap. XX, v. 34.)

As palavras seguintes poderiam deixar alguma
incerteza e dar lugar a crer numa identificação de
Deus com a pessoa de Jesus; mas, além de que
não poderia prevalecer sobre os termos precisos
daquelas que precedem, levam ainda, nelas
mesmas, a sua própria retificação.

"Eles lhe disseram: Que sois vós, pois? Jesus lhes
respondeu: eu sou o princípio de todas as coisas,
eu mesmo que vos falo. – Tenho muitas coisas a
dizer de vós; mas aquele que me enviou é
verdadeiro, e não digo senão o que aprendi com
ele." (São João, cap. VII, v. 25, 26.)

"O que meu Pai me deu é maior do que todas as
coisas; e ninguém pode arrebatá-lo da mão de
meu Pai. Meu Pai e eu somos uma mesma coisa. "

Quer dizer, que seu pai e ele não são senão um
pelo pensamento, uma vez que exprime o
pensamento de Deus; que ele tem a palavra de
Deus.

"Então, os judeus pegaram pedras para lapidá-lo.
– e Jesus lhes disse: Fiz, diante de vós, várias
boas obras pelo poder de meu Pai: por qual delas
é que me lapidais? – Os judeus lhe responderam:
Não é por nenhuma boa obra que vos lapidamos,
mas por causa de vossa blasfêmia e porque,
sendo homem, vos fazeis Deus. – Jesus lhes
replicou: Não está escrito na vossa lei: Eu disse
que sois deuses? – Se, pois, ela chama deuses
àqueles a quem a palavra de Deus está dirigida, e
que as Escrituras não possam ser destruidas, –
por que dizeis que blasfemo, eu que meu Pai
santificou e enviou no mundo, porque eu disse
que sou filho de Deus? – Se não faço as obras de
meu Pai, não me creiais; mas se as faço, quando
não queirais crer em mim, crede nas minhas
obras, a fim de que conheçais e creiais que meu
Pai está em mim, e eu em meu Pai." (São João,
cap. X, v. 29 a 38.)

Num outro capítulo, dirigindo-se aos seus
discípulos, lhes disse:

"Naquele dia, conhecereis que estou em meu Pai
e vós em mim, e eu em vós." (São João, cap. XIV,
v. 20.)

Dessas palavras, não é preciso concluir que Deus
e Jesus não fazem senão um, de outro modo
seria preciso concluir também, das mesmas
palavras, que os apóstolos não fazem,
igualmente, senão um com Deus.

IV. Palavras de Jesus depois de sua morte

"Jesus lhes respondeu: Não me toqueis, porque
ainda não subi para o meu Pai; mas ide procurar
os meus irmãos e lhes dizei, de minha parte: Eu
subi para o meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e
vosso Deus." (Aparição a Maria Madalena. São
João, cap. XX, v. 17.)

"Mas Jesus, aproximando-se, assim lhes falou:
Todo poder me foi dado no céu e sobre a Terra."
(Aparição aos Apóstolos. São Mateus, cap. XXVIII,
v. 18.)

"Ora, sois testemunhas destas coisas; – E eu vou
enviar-vos o dom de meu Pai que vos foi
prometido." (Aparição aos Apóstolos. São Lucas,
cap. XXIV, v. 48, 49.)

Tudo acusa, pois, nas palavras de Jesus, seja
quando vivo, seja depois de sua morte, uma
dualidade de pessoas perfeitamente distintas,
assim como o profundo sentimento de sua
inferioridade e de sua subordinação com relação
ao Ser supremo. Por sua insistência ao afirmar
espontaneamente, sem ser a isso constrangido,
nem provocado, por quem quer que seja, parece
querer protestar de antemão contra o papel que
ele previa que se lhe seria atribuído um dia. Se
tivesse guardado silêncio sobre o caráter de sua
personalidade, o campo estaria aberto para todas
as superstições como a todos os sistemas; mas a
precisão de sua linguagem afasta toda incerteza.

Que autoridade maior se pode encontrar do que
as próprias palavras de Jesus? Quando diz,
categoricamente: sou ou não sou tal coisa, quem
ousaria se arrogar o direito de dar-lhe um
desmentido, fosse isso para colocá-lo mais alto
do que ele mesmo não se coloca? Quem é que,
razoavelmente, pode pretender estar mais
esclarecido do que ele sobre a sua própria
natureza? Que interpretações podem prevalecer
contra afirmações tão formais e tão multiplicadas
como estas:

"Não vim por mim mesmo, mas aquele que me
enviou é o único Deus verdadeiro. – É de sua
parte que venho. – Eu digo o que vi na casa de
meu Pai. – Não cabe a mim vo-lo dar, mas isso
será para aqueles a quem meu Pai o preparou. –
Eu me vou para meu Pai, porque meu Pai é maior
do que eu. – Por que me chamais bom? Não há
senão Deus que seja bom. – Não falo por mim
mesmo, mas meu Pai, que me enviou, foi quem
me prescreveu pelo seu mandamento, o que
devo dizer. – A minha doutrina não é minha
doutrina, mas a doutrina daquele que me enviou.
– A palavra que ouvistes, não é a minha palavra,
mas a do meu Pai que ma enviou. – Não faço
nada por mim mesmo, mas não digo senão
aquilo que meu Pai me ensinou. – Nada pude
fazer por mim mesmo. – Eu não procuro a minha
vontade, mas a vontade daquele que me enviou.
– Eu vos disse a verdade que aprendi de Deus. –
Meu alimento é fazer a vontade daquele que me
enviou. – Vós sois o único Deus verdadeiro, e
Jesus Cristo que enviastes. – Meu Pai, reponho a
minha alma em vossas mãos. – Meu Pai, se for
possível, fazei com que este cálice se afaste de
mim. – Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonastes? – Eu subo para o meu Pai e vosso
Pai, para o meu Deus e vosso Deus."

Quando se lê tais palavras, pergunta-se somente
como pôde vir ao pensamento dar-lhes um
sentido diametralmente oposto àquele que elas
exprimem tão claramente, conceber uma
identificação completa de natureza e de poder
entre o senhor e aquele que se diz seu servidor.
Nesse grande processo, que dura há quinze
séculos, quais são as peças de convicção? Os
Evangelhos, – não há outras, – que, sobre o
ponto em litígio, não dão lugar a nenhum
equívoco. A esses documentos autênticos, que
não se pode contestar sem se inscrever em falso
contra a veracidade dos evangelistas e do próprio
Jesus, documentos estabelecidos por
testemunhos oculares, que se lhes opõem? Uma
doutrina teórica puramente especulativa, nascida
três séculos mais tarde de uma polêmica
estabelecida sobre a natureza abstrata do Verbo,
vigorosamente combatida durante vários séculos,
e que não prevaleceu senão pela pressão de um
poder civil absoluto.

V. Dupla natureza de Jesus

Poder-se-ia objetar que, em razão da dupla
natureza de Jesus, suas palavras eram a
expressão de seu sentimento como homem, e
não como Deus. Sem examinar, neste momento,
por qual encadeamento de circunstâncias se
conduziu, bem mais tarde, à hipótese dessa
dupla natureza, admitamo-la, por um instante, e
vejamos se, em lugar de elucidar a questão, ela
não a complica mais, ao ponto de torná-la
insolúvel.

O que devia ser humano em Jesus era o corpo, a
parte material; deste ponto de vista
compreende-se que ele haja mesmo podido
sofrer como homem. O que devia ser divino nele
era a alma, o Espírito, o pensamento, em uma
palavra, a parte espiritual do Ser. Se sentia e
sofria como homem, deveria pensar e falar como
Deus. Ele falou como homem ou como Deus?
Está aí uma questão importante pela autoridade
excepcional de seus ensinamentos. Se falou
como homem, suas palavras são discutíveis; se
falou como Deus elas são indiscutíveis; é preciso
aceitá-las e a elas se conformar sob pena de
deserção e de heresia; o mais ortodoxo seria
aquele que delas se aproximasse mais.

Dir-se-á que, sob o envoltório corpóreo, Jesus
não tinha consciência de sua natureza divina?
Mas, se fora assim, não teria mesmo pensado
como Deus, sua natureza divina teria ficado no
estado latente; só a natureza humana teria
presidido à sua missão, aos seus atos morais
como aos seus atos materiais. É, pois, impossível
fazer abstração de sua natureza divina durante a
sua vida, sem enfraquecer a sua autoridade.

Mas se falou como Deus, por que esse incessante
protesto contra a sua natureza divina que, nesse
caso, não podia ignorar? Estaria, pois, enganado,
o que seria pouco divino, ou teria
conscientemente enganado o mundo, o que o
seria ainda menos. Parece-nos difícil sair desse
dilema.

Admitindo-se que falou ora como homem, ora
como Deus, a questão se complica, pela
impossibilidade de distinguir o que vinha do
homem e o que vinha de Deus.

No caso, onde haveria tido motivos para
dissimular a sua verdadeira natureza durante a
sua missão, o meio mais simples era dela não
falar, ou se exprimir como o fez em outras
circunstâncias, de maneira vaga e parabólica,
sobre os pontos cujo conhecimento estava
reservado para o futuro; ora, tal não é aqui o
caso, uma vez que as suas palavras não têm
nenhuma ambigüidade.

Enfim, se, apesar de todas essas considerações,
se pudesse ainda supor que, quando vivo,
ignorou a sua verdadeira natureza, essa opinião
não é mais admissivel depois da sua
ressurreição; porque, quando aparece aos seus
discípulos, não é mais o homem que fala, é o
Espírito desligado da matéria, que deve ter
recobrado a plenitude de suas faculdades
espirituais e a consciência de seu estado normal,
de sua identificação com a divindade; e,
entretanto, é então que diz: Eu subo para o meu
Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus!

A subordinação de Jesus é ainda indicada pela
sua própria qualidade de mediador, que implica a
existência de uma pessoa distinta; é ele que
intercede junto de seu Pai; que se oferece em
sacrifício para resgatar os pecadores; ora, se é
Deus, ele mesmo, ou lhe era igual em todas as
coisas, não tinha necessidade de interceder,
porque não se intercede junto de si mesmo.

VI. Opinião dos Apóstolos

Até o presente, apoiamos-nos exclusivamente
nas próprias palavras do Cristo, como o único
elemento peremptório de convicção, porque fora
disso não pode haver senão opiniões pessoais.

De todas essas opiniões, as que têm mais valor,
incontestavelmente, são as dos apóstolos, tendo
em vista que eles o assistiram em sua missão, e
que, se lhes deu instruções secretas quanto à sua
natureza, delas se encontrará traços em seus
escritos. Tendo vivido em sua intimidade, melhor
do que quem quer que seja, deveriam conhecê-
lo. Vejamos, pois, de que maneira o
consideraram.

"Ó Israelitas, escutai as palavras que vou vos
dizer: Sabeis que Jesus de Nazaré foi um homem
que Deus tornou célebre entre vós pelas
maravilhas, pelos prodígios e pelos milagres que
fez por ele no vosso meio. – Entretanto, o
crucificastes, e o fizestes morrer pelas mãos dos
maus, tendo-o entregue por uma ordem
expressa da vontade de Deus e por um decreto
de sua presciência. – Mas Deus o ressuscitou,
parando as dores do inferno, sendo impossível
que ali fosse retido. – Porque Davi disse em seu
nome: Tenho sempre o Senhor presente diante
de mim, porque ele está à minha direita, a fim de
que eu não seja abalado. – É por isso que o meu
coração está alegre, que a minha língua cantou
cânticos de alegria, e que mesmo a minha carne
repousará em esperança; – porque não deixareis,
minha alma no inferno, e que não permitis nunca
que vosso Santo sofra a corrupção. – Vós me
fizestes conhecer o caminho da vida, e me
enchereis com a alegria que dá a visão do vosso
rosto." (Atos dos Apóstolos, cap. II, v. 22 a 28.
Pregação de São Pedro.)

"Depois, portanto, que foi elevado pelo poder de
Deus, e que recebeu o cumprimento da promessa
de que o Pai lhe enviara o Santo Espírito, ele
difundiu esse Espírito Santo que vedes e
entendeis agora; – porque Davi nunca subiu ao
céu; – ora, ele mesmo disse: O Senhor disse ao
meu Senhor: Sentai-vos à minha direita, até que
eu haja reduzido os vossos inimigos a vos servir
de escabelo. – Que toda a casa de Israel saiba,
pois, muito certamente que Deus fez Senhor e
Cristo esse Jesus que crucificastes." (Atos dos
Apóstolos, capítulo II, v. de 33 a 36, Pregações
de São Pedro.)

"Moisés disse aos nossos pais: O Senhor vosso
Deus vos suscitará, dentre os vossos irmãos, um
profeta como eu; escutai-o em tudo o que vos
dirá. – Quem não escutar esse profeta será
exterminado do meio do povo.

"Foi por vós primeiramente que Deus suscitou
seu filho, e vo-lo enviou para vos bendizer, a fim
de que cada um se convertesse de sua má vida."
(Atos dos Ap., cap. III, v. 22, 23, 26. Pregação de
São Pedro.)

"Nós vos declaramos, a todos vós e a todo povo
de Israel, que é pelo nome de Nosso Senhor Jesus
Cristo de Nazaré, o qual haveis crucificado, e que
Deus ressuscitou dentre os mortos; foi por ele
que este homem está agora curado como o vedes
diante de vós." (Atos dos Ap., cap. IV, v. 10.
Pregação de São Pedro.)

"Os reis da Terra foram levantados, os príncipes
se uniram juntos contra o Senhor e contra seu
Cristo. – Porque Herodes e Pôncio Pilatos, com os
Gentios e o povo de Israel, verdadeiramente se
puseram de acordo, nesta cidade, contra vosso
santo Filho Jesus, que consagrastes pela vossa
unção, para fazer tudo o que o vosso poder e o
vosso conselho ordenaram dever ser feito." (Atos
dos Ap. cap. IV, v. 26, 27, 28. Prece dos
Apóstolos.)

"Pedro e os outros apóstolos responderam: é
necessário antes obedecer a Deus do que aos
homens. – O Deus de nossos Pais ressuscitou
Jesus que fizestes morrer dependurando-o no
madeiro. – Foi ele que Deus elevou para a sua
direita como sendo o príncipe e o salvador, para
dar a Israel a graça da penitência e a remissão
dos pecados." (V. Atos dos Ap., cap. V, v. 29, 30,
31. Respostas dos Apóstolos ao grande
sacerdote.)

"Foi esse Moisés que disse aos filhos de Israel:
Deus vos suscitará dentre vossos irmãos um
profeta como eu, escutai-o.

Mas o Mais Alto não habita, nos templos feitos
pela mão dos homens, segundo esta palavra do
profeta: – O céu é o meu trono, e a terra é o meu
escabelo. Que casa me edificareis, disse o
Senhor? E qual poderia ser o lugar de meu
repouso? "(Atos dos Apóstolos, cap. VII, v. 37,
48, 49. Discurso de Estêvão.)

"Mas Estêvão, estando cheio do Santo Espírito, e
levantando os olhos aos céus, viu a glória de
Deus, e Jesus que estava de pé à direita de Deus,
e ele disse: Vejo abertos os céus, e o Filho do
homem que está de pé à direita de Deus.

"Então, lançando grandes gritos, e tapando os
ouvidos, lançaram-se juntos sobre ele; – e
tendo-o arrastado fora dos muros da cidade,
lapidaram-no; e as testemunhas depuseram as
sua vestes aos pés de um jovem chamado Saulo
(mais tarde São Paulo). – Assim lapidaram
Estêvão, e invocava Jesus, e dizia: Senhor Jesus,
recebei o meu Espírito." (Atos dos Apóstolos,
cap. VII, v. de 55 a 58. Martírio de Estêvão)

Estas citações testemunham claramente o caráter
que os apóstolos atribuíam a Jesus . A idéia
exclusiva que delas ressalta é a de sua
subordinação a Deus, da constante supremacia
de Deus, sem que nada ali revele um pensamento
de assimilação qualquer de natureza e de poder.
Para eles, Jesus era um homem profeta,
escolhido e bendito por Deus. Não foi, pois,
entre os apóstolos que a crença na divindade de
Jesus nasceu. São Paulo, que não conhecera
Jesus, mas que, de ardente perseguidor se
tornou o mais zeloso e o mais eloqüente
discípulo da fé nova, e cujos escritos prepararam
os primeiros formulários da religião cristã, não é
menos explícito a esse respeito. É o mesmo
sentimento de dois seres distintos, e da
supremacia do Pai sobre o filho.

"Paulo, servidor de Jesus Cristo, apóstolo da
vocação divina, escolhido e destinado para
anunciar o evangelho de Deus, – que ele
prometera antes, pelos seus profetas, nas
escrituras santas, – com respeito a seu filho, que
lhe nasceu, segundo a carne, do sangue e da
raça de Davi; – que foi predestinado para ser
filho de Deus, num soberano poder, segundo o
Espírito de santidade, pela ressurreição dentre os
mortos; com respeito, disse eu, a Jesus Cristo,
nosso Senhor; – por quem recebemos a graça do
apostolado, para fazer obedecer, ao mesmo
tempo, todas as nações pela virtude de seu
nome; – na fileira das quais estais também, como
sendo chamadas por Jesus Cristo; – a vós que
estais em Roma, que sois queridos de Deus, e
chamados para serem santos; que Deus, nosso
Pai, e Jesus Cristo, nosso Senhor, vos dêem a
graça e a paz." (Romanos, cap. I, v. 1 a 7.)

"Assim, estando justificados pela fé, tenhamos a
paz com Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor.

Pois por que, quando estávamos na languidez do
pecado, Jesus Cristo morreu por ímpios como
nós, no tempo destinado por Deus?

Jesus Cristo não deixou de morrer por nós no
tempo destinado por Deus. Assim, estando agora
justificados pelo seu sangue, seremos com mais
forte razão livrados por ele da cólera de Deus.

E não somente fomos reconciliados, a nós, nos
glorificamos mesmo em Deus por Jesus Cristo,
nosso Senhor, por quem obtivemos essa
reconciliação.

Se pelo pecado de um só vários morreram, a
misericórdia e o dom de Deus se derramaram,
com mais forte razão, abundantemente, sobre
vários pela graça de um só homem, que é Jesus
Cristo." (Romanos, cap. V, v. 1, 6, 9, 11, 15, 17.)

"Se somos filhos, somos também herdeiros;
HERDEIROS de Deus e CO-HERDEIROS de Jesus
Cristo, desde que, todavia, soframos com ele."
(Romanos, cap. VIII, v. 17.)

"Se vos confessais de boca que Jesus Cristo é o
Senhor e se credes de coração que Deus o
ressuscitou dentre os mortos, sereis salvos."
(Romanos, cap. X, v. 9.)

"Em seguida virá a consumação de todas as
coisas, quando terá entregue o seu reino a Deus,
seu Pai, e tiver destruido todo império, toda
dominação, todo poder, – porque Jesus Cristo
deve reinar até que seu Pai tenha posto todos os
seus inimigos sob os pés. – Ora, a morte será o
último inimigo que será destruído; porque as
Escrituras disseram que Deus os pôs todos sob
os pés e a todos sujeitou-lhe; é indubitável que
nisso é preciso excetuar aquele que sujeitou
todas as coisas. – Quando, pois, todas as coisas
estiverem submetidas ao Filho, quando o Filho
estiver, ele mesmo, submetido a aquele que lhe
terá submetido todas as coisas, a fim de que
Deus seja tudo em todos." (1a. aos Coríntios,
cap. XV, v. de 24 a 28.)

"Mas veremos que Jesus, que se tornara, por um
pouco de tempo, inferior aos anjos, foi coroado
de glória e de honra por causa da morte que
sofreu; Deus, em sua bondade, tendo querido
que ele morresse por todos, – porque era bem
digno de Deus, por quem e para quem são todas
as coisas, que, querendo conduzir à glória vários
filhos, consumou e aperfeiçoou pelo sofrimento,
aquele que deveria ser o chefe e o autor de sua
salvação.

"Assim, aquele que santifica e aqueles que são
santificados, vêm todos de um mesmo princípio;
é por isso que não ruboriza ao chamá-los seus
irmãos, – dizendo: Eu anunciarei o vosso nome
aos meus irmãos; eu cantarei os vossos louvores
no meio da assembléia de vosso povo. – E,
alhures, porei a minha confiança em Deus. E em
um outro lugar: eis-me com os filhos que Deus
me deu.

"Eis porque foi necessário que fosse em tudo
semelhante aos seus irmãos, para ser para com
Deus um pontífice compassivo e fiel em seu
ministro, a fim de expiar os pecados do povo. –
porque foi das penas e dos próprios sofrimentos,
pelos quais foi tentado e provado, que tirou a
virtude e a força de socorrer aqueles que, são
também tentados." (Hebreus, cap. II, v. de 9 a 13,
17, 18.)

"Portanto, vós meus santos irmãos, que tendes
parte na vocação celeste, considerai Jesus, que é
o apóstolo e o pontífice da religião que
professamos; – que é fiel àquele que o
estabeleceu nesse cargo, como Moisés lhe foi fiel
em toda sua casa; – porque ele foi julgado digno
de uma glória tanto maior do que a de Moisés,
do que aquele que edificou a casa, e mais
estimável do que a própria casa; porque não há
casa que não haja sido construída por alguém.
Ora, aquele que é o arquiteto e o criador de
todas as coisas é Deus." (Hebreus, cap. III, v. de 1
a 4.)

VII. Predições dos profetas concernentes a Jesus

Além das afirmações de Jesus e da opinião dos
apóstolos, há um testemunho do qual os mais
ortodoxos dos crentes não saberiam contestar o
valor, uma vez que o apontam constantemente
como artigo de fé; é o do próprio Deus; quer
dizer, o dos profetas, falando sob a inspiração e
anunciando a vinda do Messias. Ora, eis as
passagens da Bíblia consideradas como a
predição desse grande acontecimento.

"Eu o vejo, mas não agora; eu o vejo mas não de
perto; uma estrela procede de Jacó, e um cetro se
levanta de Israel e trespassa os chefes de Moab,
e destruirá todos os filhos de Seth." (Números,
XXIV, v. 17.)

"Eu lhes suscitarei um profeta, como tu, de entre
seus irmãos, e colocarei as minhas palavras em
sua boca, e lhes dirá ele o que eu lhe tiver
ordenado. E ocorrerá que, quem não escutar as
palavras que dirá em meu nome, disso lhe
pedirei conta." (Deuteronômio. XVIII, v. 18, 19.)

"Ocorrerá, pois, quando os dias tiverem se
cumprido para lá levar-te com teus pais que farei
levantar a tua posteridade depois de ti, um dos
teus filhos, e estabelecerei o seu reino, e ele me
construirá uma casa, e afirmarei seu trono para
sempre. Eu lhe serei pai e ele me será filho; e não
retirarei a minha misericórdia dele, como a retirei
daquele que foi antes de ti, e o estabelecerei em
minha casa e em meu reino para sempre, e seu
trono será afirmado para sempre." (I,
Paralipômenos, XVII, v. de 11 a 14.)

"É porque o próprio Senhor vos dará um sinal.
Eis: uma virgem ficará grávida, e ela parirá um
filho, e será chamado seu nome Emmanuel."
(Isaías, VII, v. 14.)

"Porque a criança nos nasceu, o Filho nos foi
dado, e o poder foi posto sobre o seu ombro, e
se chamará seu nome o Admirável, o
Conselheiro, o Deus forte, o Poderoso, o Pai da
eternidade, o Príncipe da paz." (Isaías, IX, v. 5)

"Eis meu servidor, eu o sustentarei; é o meu
eleito, minha alma nele colocou sua afeição;
coloquei o meu Espírito sobre ele; ele exercerá a
justiça entre as nações.

"Não se retirará nunca, nem se precipitará nunca,
até que haja estabelecido a justiça sobre a Terra,
e os seres se detiverem à sua lei." (Isaias, XLII, v.
1 e 4.)

"Ele gozará do trabalho de sua alma, e nisso será
saciado; e meu servidor justo nisso justificará
vários, pelo conhecimento que terão dele e ele
mesmo levará suas iniqüidades." (Isaías, LIII, v.
11.)

"Rejubila-te extremamente, filha de Sião; lance
gritos de alegria, filha de Jerusalém! Eis: teu rei
virá a ti, justo e salvador humilde, e montará
sobre um asno, e sobre o potro de uma jumenta.
E proibirei os carros de guerra de Efraim, e os
cavalos de Jerusalém, e o arco do combate será
também proibido e teu rei falará de paz às
nações; e seu domínio se estenderá desde um
mar ao outro mar, e desde o rio até os confins da
Terra." (Zacarias, IX, v. 9, 10.)

"E ele (o Cristo) se manterá, e governará pela
força do Eterno, e com a magnificência do nome
do Eterno, seu Deus. E eles farão as pazes, e
agora será glorificado até os confins da Terra, e
será ele que fará a paz. (Miquéias, V, v. 4.)

A distinção entre Deus e seu enviado futuro está
caracterizada da maneira mais formal; Deus o
designa seu servidor, por conseqüência seu
subordinado; em suas palavras, nada há que
implique a idéia de igualdade de poder, nem de
consubstancialidade entre as duas pessoas. Deus
ter-se-ia enganado, e os homens vindos três
séculos após Jesus Cristo teriam visto mais justo
do que ele? Tal parece ser a sua pretensão.

VIII. O Verbo se fez carne

"No começo era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus. – Ele estava no começo
com Deus. – Todas as coisas foram feitas por ele;
e nada do que fez não fez sem ele. – Nele estava
a vida e a vida era a luz dos homens; – E a luz
brilhou nas trevas, e as trevas não a
compreenderam.

"Houve um homem enviado de Deus que se
chamava João. – Ele veio para servir de
testemunha, para dar testemunho à luz, a fim de
que todos cressem por ele. – Ele não era a luz,
mas veio para dar testemunho daquele que era a
luz.

"Aquela era a verdadeira luz que clareia todo
homem vindo neste mundo. – Ele estava no
mundo e o mundo nada fez por ele, e o mundo
não o conheceu. – Ele veio aos seus e os seus
não o receberam. – Mas deu a todos aqueles que
o receberam o poder de serem feitos filhos de
Deus, àqueles que creram em seu nome, que não
são nascidos do sangue nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus
mesmo.

"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e
vimos a sua glória, sua glória tal quanto o Filho
único deveria recebê-la do Pai; ele, digo eu,
habitou entre nós, cheio de graça e de verdade."
(João, cap. 1º, v. de 1 a 14.)

Esta passagem dos Evangelhos é a única que, à
primeira vista, parece encerrar implicitamente
uma idéia de identificação entre Deus e a pessoa
de Jesus; é também aquela sobre a qual se
estabeleceu, mais tarde, a controvérsia a este
respeito. Essa questão da divindade de Jesus não
chegou senão gradualmente; nasceu das
discussões levantadas a propósito das
interpretações dadas, por alguns, às palavras
Verbo e Filho. Não foi senão no quarto século
que ela foi adotada, em princípio, por uma parte
da Igreja. Esse dogma é, pois, o resultado de
uma decisão dos homens e não de uma revelação
divina.

Há de início a notar que, as palavras que citamos
mais acima, são de João, e não de Jesus, e que,
admitindo que não hajam sido alteradas, não
exprimem, em realidade, senão uma opinião
pessoal, uma indução onde se encontra o
misticismo habitual de sua linguagem; elas não
poderiam, pois, prevalecer contra as afirmações
reiteradas do próprio Jesus.

Mas, aceitando-as tais quais são, elas não
resolvem de nenhum modo a questão no sentido
da divindade, porque se aplicariam igualmente a
Jesus, criatura de Deus.

Com efeito, o Verbo é Deus, porque é a palavra
de Deus. Tendo Jesus recebido essa palavra
diretamente de Deus, com a missão de revelá-la
aos homens, assimilou-a; a palavra divina, da
qual estava penetrado, se encarnou nele; trouxe-
a ao nascer, e foi com razão que Jesus pôde
dizer: O Verbo se fez carne, e habitou entre nós.
Jesus pode, pois, estar encarregado de transmitir
a palavra de Deus sem ser Deus, ele mesmo,
como um embaixador transmite as palavras de
seu soberano, sem ser o soberano. Segundo o
dogma da divindade, é Deus que fala; na outra
hipótese, ele fala pela boca de seu enviado, o
que não rouba nada à autoridade de suas
palavras.

Mas quem autoriza essa suposição antes do que
outra? A única autoridade competente para
decidir a questão são as próprias palavras de
Jesus, quando disse: "Eu nunca falei de mim
mesmo, mas aquele que me enviou me
prescreveu , por seu mandamento o que devo
dizer; - minha doutrina não é a minha doutrina,
mas a doutrina daquele que me enviou, a palavra
que ouvistes não é, minha palavra, mas a de meu
Pai que me enviou." É impossível exprimir-se
com mais clareza e precisão.

A qualidade de Messias ou enviado, que lhe é
dada em todo o curso dos Evangelhos, implica
uma posição subordinada com relação àquele
que ordena; aquele que obedece não pode estar
igual àquele que manda. João caracteriza essa
posição secundária, e, por conseqüência,
estabelece a dualidade das pessoas quando
disse: E vimos a sua glória, tal quanto "o Filho
único deveria receber do Pai"; porque aquele que
recebe não pode ser igual àquele que dá, e
aquele que dá a glória não pode ser igual àquele
que a recebe. Se Jesus é Deus, possui a glória por
si mesmo e não a espera de ninguém; se Deus e
Jesus são um único ser sob dois nomes
diferentes, não poderia existir entre eles nem
supremacia, nem subordinação; desde então, que
não há paridade absoluta de posição, é que são
dois seres distintos.

A qualificação de Messias divino não implica a
igualdade entre o mandatário e o mandante,
como a do enviado real entre um rei e seu
representante.

Jesus era um messias divino pelo duplo motivo
que tinha a sua missão de Deus, e que as suas
perfeições o colocavam em relação direta com
Deus.

IX. Filho de Deus e filho do homem

O título de Filho de Deus, longe de implicar a
igualdade, é bem antes o indício de uma
submissão; ora, deve estar submetido a alguém e
não a si mesmo.

Para que Jesus fosse o igual absoluto de Deus,
seria necessário que fosse como ele, de toda a
eternidade, quer dizer, que fosse incriado; ora, o
dogma diz que Deus o engendrou de toda a
eternidade; mas quem disse engendrar diz criar;
que isso seja, ou não, de toda a eternidade, não
se é menos uma criatura, e, como tal,
subordinada a seu Criador; é a idéia implícita
encerrada na palavra Filho.

Jesus nasceu no tempo? De outro modo dito: foi
um tempo na eternidade, na eternidade passada,
onde ele não existia? Ou bem é co-Eterno com o
Pai? Tais são as sutilezas sobre as quais discutiu-
se durante os séculos. Sobre qual autoridade se
apóia a doutrina da co-eternidade passada ao
estado de dogma? Sobre a opinião dos homens
que a estabeleceram. Mas esses homens, por
qual autoridade fundaram a sua opinião? Isso
não é sobre a de Jesus, uma vez que se declara
subordinado; não é sobre a dos profetas que o
anunciam como o enviado e o servidor de Deus.
Em quais documentos desconhecidos, mais
autênticos do que os Evangelhos encontraram
essa doutrina? Aparentemente, na consciência e
na superioridade de suas próprias luzes.

Deixemos, pois, essas vãs discussões que não
poderiam terminar, e cuja solução mesmo, se
fora possível, não tornaria os homens melhores.
Digamos que Jesus é Filho de Deus, como todas
as criaturas; ele o chama seu Pai como nós
aprendemos a chamar nosso Pai. É o Filho bem-
amado de Deus porque, tendo chegado à
perfeição que o aproxima de Deus, possui toda a
sua confiança e todo o seu afeto; ele se diz, ele
mesmo, Filho único, não que seja o único ser
chegado a esse grau, mas porque só ele estava
predestinado a cumprir essa missão sobre a
Terra.

Se a qualificação de Filho de Deus parecia apoiar
a doutrina da divindade, não era, do mesmo
modo daquela do Filho do homem que Jesus se
deu em sua missão, e que fez o assunto de
muitos comentários.

Para melhor compreender-lhe o verdadeiro
sentido, é necessário remontar à Bíblia, onde
está dada por ele mesmo ao profeta Ezequiel.

"Tal foi a imagem da glória do Senhor que me foi
apresentada. Tendo, pois, visto essas coisas,
lancei meu rosto por terra: e ouvi uma voz que
me falava e disse: Filho do homem, tende-vos
sobre os vossos pés e eu falarei convosco. – E o
Espírito, tendo me falado da sorte, entrou em
mim, e me firmou sobre os meus pés e eu o ouvi
que me falava e me dizia: Filho do homem, eu
vos envio aos filhos de Israel, para um povo
apóstata que se retirou de mim. Violaram até
este dia, eles e seus pais, a aliança que fiz com
eles." (Ezequiel, cap. II, v. 1, 2, 3.)

"Filho do homem, eis que vos prepararam os
grilhões; a eles vos prenderão e deles não saireis
nunca." (Cap. III, v. 25.)

"O Senhor me dirigiu ainda a sua palavra e me
disse: – E vós, Filho do homem, eis o que disse o
Senhor Deus à terra de Israel: o fim vem; ele vem,
esse fim, sobre os quatro cantos desta terra."
(Cap. VII, v. 1, 2.)

"No décimo dia, do décimo mês, do nono ano, o
Senhor me dirigiu a palavra e me disse: – Filho do
homem, marcai bem esse dia que o rei de
Babilônia reuniu as sua tropas diante de
Jerusalém." (Cap. XXIV, v. 1, 2.)

"O Senhor me disse ainda estas palavras: – Filho
do homem, vou vos ferir com uma ferida e vos
arrebatar o que é mais agradável aos vossos
olhos; mas não fareis nunca lamentos fúnebres;
não chorareis nunca, e as lágrimas nunca
correrão em vosso rosto. – Suspirareis em
segredo, e não fareis luto nunca como foi feito
para os mortos; vossa coroa permanecerá ligada
sobre a vossa cabeça, e tereis vossos sapatos em
vossos pés: não cobrireis o rosto e não comereis
nunca a carne que se dá àqueles que estão no
luto. – Eu falei, pois, de manhã ao povo, e à noite
minha mulher morreu. No dia seguinte de
manhã, fiz o que Deus me ordenara. (Cap. XXIV,
v. de 15 a 18.)

"O Senhor me falou ainda e me disse: Filho do
homem, profetizai com respeito aos pastores de
Israel; profetizai e dizei aos pastores: Eis o que
disse o Senhor Deus: Infelizes os pastores de
Israel que apascentam a si mesmos: os pastores
não apascentam os seus rebanhos?" (Cap. XXXIV,
v. 1, 2.)

"Então eu ouvi que me falava, no interior da casa;
e o homem que estava próximo de mim me
disse: - Filho do homem, eis aqui o lugar de meu
trono: o lugar onde porei os meus pés, e onde
permanecerei para sempre no meio dos filhos de
Israel, e a casa de Israel não profanará mais meu
santo nome no futuro, nem eles, nem seus reis,
por suas idolatrias, pelos sepulcros de seus reis,
nem pelos seus nobres." (Cap. XLIII, v. 6, 7.)

"Porque Deus nunca ameaça como os homens, e
não entra nunca em furor como o Filho do
homem." (Judite, Cap. VIII, v. 15.)

É evidente que a qualificação de Filho do homem
quer dizer isto: que nasceu do homem, por
oposição àquilo que está fora da Humanidade. A
última citação, tirada do livro de Judite, não
deixa dúvida sobre o significado desta palavra,
empregada num sentido muito literal. Deus não
designou Ezequiel senão sob esse nome, sem
dúvida para lhe lembrar que, apesar do dom da
profecia que lhe foi concedido, com isso não
pertencia menos à Humanidade, e a fim de que
não se cresse de uma natureza excepcional.

Jesus se dá a si mesmo essa qualificação com
uma persistência notável, porque não é senão em
muito raras circunstâncias que se diz Filho de
Deus. Em sua boca não pode ter outro
significado que o de lembrar que, também ele,
pertence à Humanidade: por aí se assimila aos
profetas que o precederam e aos quais se
comparou fazendo alusão à sua morte, quando
disse: JERUSALÉM QUE MATA OS PROFETAS? A
insistência que coloca em se designar como filho
do homem, parece um protesto antecipado
contra a qualidade que prevê que dar-se-lhe-á
mais tarde, a fim de que seja bem constatado
que ela não saiu de sua boca.

É notável que, durante essa interminável
polêmica que apaixonou os homens durante uma
longa série de séculos, e dura ainda, que
acendeu as fogueiras e fez verter ondas de
sangue, disputou-se sobre uma abstração, a
natureza de Jesus, da qual se fez a pedra angular
do edifício, embora disso não haja falado; e que
se haja esquecido uma coisa, a de que o Cristo
disse ser toda a lei e os profetas: o amor de Deus
e do próximo, e a caridade, da qual fez a
condição expressa de salvação. Agravou-se
sobre a questão da afinidade de Jesus com Deus,
e se passou completamente sob silêncio as
virtudes que ele recomendou e das quais deu o
exemplo.

O próprio Deus, se apagou diante da exaltação
da personalidade do Cristo. No símbolo de
Nicéia, está dito simplesmente: Cremos em um
Deus único, etc.; mas como é esse Deus? De
nenhum modo se fez menção aos seus atributos
essenciais: a soberana vontade e a soberana
justiça. Essas palavras seriam a condenação dos
dogmas que consagram sua parcialidade para
com certas criaturas, sua inexorabilidade, seu
ciúme, sua cólera, seu espírito vingativo, dos
quais se autoriza para justificar as crueldades
cometidas em seu nome.

Se o símbolo de Nicéia, que se tornou o
fundamento da fé católica, estava segundo o
Espírito do Cristo, por que o anátema com que o
termina? Não é a prova de que é obra da paixão
dos homens? Aliás, a que se deve a sua adoção?
À pressão do imperador Constantino que disso
fizera uma questão mais política do que
religiosa. Sem a sua ordem, o Concílio de Nicéia
não ocorreria; sem a intimidação que exerceu, é
mais do que provável que o Arianismo o
arrebataria. Portanto, dependeu da autoridade
soberana de um homem que não pertencia à
Igreja, que reconheceu mais tarde o erro que
fizera politicamente, e que inutilmente procurou
retornar sobre os seus passos conciliando as
partes, para que não sejamos arianos em lugar
de sermos católicos, e para que o Arianismo não
fosse hoje a ortodoxia, e o catolicismo a heresia.

Depois de dezoito séculos de lutas e de disputas
vãs, durante os quais se pôs completamente de
lado a parte mais essencial do ensino do Cristo, a
única que poderia assegurar a paz da
Humanidade, se está ainda nessas discussões
estéreis que não levaram senão a perturbações,
engendraram a incredulidade, e cujo objeto não
satisfaz mais à razão.

Há, hoje, uma tendência manifesta da opinião
geral de retornar às idéias fundamentais da
primitiva Igreja, e à parte moral do ensinamento
do Cristo, porque é a única que pode tornar os
homens melhores. Aquela é clara, positiva, e não
pode dar lugar a nenhuma controvérsia. Se a
Igreja houvesse seguido este caminho desde o
princípio, seria hoje onipotente em lugar de estar
em declínio; teria reunido a imensa maioria dos
homens em lugar de estar despedaçada pelas
facções.

Quando os homens caminharem sob essa
bandeira, se estenderão mãos fraternas, em lugar
de se lançarem anátemas e maldições, por
questões que, na maioria do tempo, não
compreendem.

Essa tendência da opinião é o sinal de que
chegou o momento para levar a questão para o
seu verdadeiro terreno.

Livro: A Gênese

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